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ARCADISMO EM POEMAS LÍRICOS DE BOCAGE E GONZAGA Arcadismo PROFESSORA – LEONOR LEÃO FEIO

terça-feira, 3 de abril de 2012

O Arcadismo
 é uma escola literária surgida na Europa no século XVIII, razão por que também é denominada como Setecentismo ou neoclassicismo. O nome "Arcadismo" é uma referência à Arcádia, região bucólica doPeloponeso, na Grécia antiga, tida como ideal de inspiração poética.

Características do Arcadismo
O Arcadismo constitui-se em uma forma de literatura mais simples, opondo-se aos exageros e rebuscamentos do Barroco, expresso pela frase "Inutilia truncat" ("cortar o inútil"). Os temas também são simples e comuns aos seres humanos, como o amor, a morte, o casamento, a solidão. As situações mais freqüentes apresentam um pastor abandonado pela amada, triste e queixoso. É a"Aurea mediocritas" ("mediocridade áurea"), que simboliza a valorização das coisas cotidianas, focalizadas pela razão.
Os autores retornam aos modelos clássicos da Antiguidade greco-latina e aos renascentistas, razão pela qual o movimento é também conhecido como neoclássico. Os seus autores acreditavam que a Arte era uma cópia da natureza, refletida através da tradição clássica. Por isso a presença da mitologia pagã, além do recurso a frases latinas.
Inspirados na frase do escritor latino Horácio "Fugere urbem"("fugir da cidade"), e imbuídos da teoria do "bom selvagem" de Jean-Jacques Rousseau, os autores árcades voltam-se para a natureza em busca de uma vida simples, bucólica, pastoril, do "locus amoenus", do refúgio ameno em oposição aos centros urbanos dominados pelo Antigo Regime, pelo Absolutismo monárquico.
Cumpre salientar que essa busca configurava apenas um estado de espírito, uma posição política e ideológica, uma vez que esses autores viviam nos centros urbanos e, burgueses que eram, ali mantinham os seus interesses econômicos. Por isso justifica falar-se em "fingimento poético" no arcadismo fato que transparece no uso dos pseudônimos pastoris.
Além disso, diante da efemeridade da vida, defendem o "Carpe diem", pelo qual o pastor, ciente da brevidade do tempo, convida a sua pastora a gozar o momento presente.
Quanto à forma, usavam muitas vezes sonetos com versos decassílabos, rima optativa e a tradição da poesia épica.

O Arcadismo em Portugal
O clima de renovação atingiu também Portugal que, no começo do século XVIII, passava pelo período final de sua reestruturação econômica, política e cultural.
Durante o reinado de João V de Portugal (1707-1750) percebe-se, no país, uma certa abertura intelectual e política, como por exemplo a licença concedida à Congregação do Oratório para ministrar ensino, até então privilégio da Companhia de Jesus.
Em 1746, Luís António Verney, inspirado nas idéias dos racionalistas franceses, publica as cartas que compõem o seu "Verdadeiro Método de Estudar", obra em que critica o ensino tradicional e propõe reformas que visam a colocar a cultura portuguesa a par com a do resto da Europa.
Caberá, entretanto, ao marquês de Pombal, ministro de José I de Portugal (1750-1777), concretizar essas aspirações. Agindo com plena autonomia de poderes, o despotismo esclarecido de Pombal operou verdadeira transformação nos rumos da cultura portuguesa:
·         expulsou os jesuítas em 1759, o que enfraqueceu bastante a influência religiosa no campo cultural;
·         incentivou os estudos científicos;
·         reformou o ensino e, apesar de manter um sistema de censura, afrouxou muito a repressão que era exercida pelo Santo Ofício (a Inquisição).
Em Portugal, o Arcadismo iniciou-se oficialmente em 1756, com a fundação da “Arcádia Lusitana”, entidade em que se reuniam intelectuais e artistas para discutirem Arte.
A “Arcádia Lusitana” tinha por lema a frase latina "Inutilia truncat" ("acabe-se com as inutilidades"), que vai caracterizar todo o movimento no país. Visavam com isto erradicar os exageros, o rebuscamento, e a extravagância preconizados pelo Barroco, retornando a uma literatura simples.

Manuel Maria Barbosa du Bocage
Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage (Setúbal, 15 de Setembro de 1765 — Lisboa, 21 de Dezembro de 1805) foi um poeta português e, possivelmente, o maior representante do arcadismo lusitano. Embora ícone deste movimento literário, é uma figura inserida num período de transição do estilo clássico para o estilo romântico que terá forte presença na literatura portuguesa do século XIX.
BOCAGE LIRICO
A poesia lírica de Bocage apresenta duas vertentes principais: uma, luminosa, etérea, em que o poeta se entrega inebriado à evocação da beleza das suas amadas (Marília, Jónia, Armia, Anarda, Anália), expressando lapidarmente a sua vivência amorosa torrencial: "Eu louco, eu cego, eu mísero, eu perdido / De ti só trago cheia, oh Jónia, a mente; / Do mais e de mim ando esquecido."; outra, nocturna, pessimista, depressiva em que manifesta a incomensurável dor que o tolhe, devido à indiferença, à traição, à ingratidão ou à "tirania" de Nise, Armia, Flérida ou Alcina.
Estas assimetrias são um lugar-comum na obra de Bocage, plena de contrários. São ainda o corolário do seu temperamento arrebatado e emotivo. A dialéctica está bem patente nos seus versos: "Travam-se gosto e dor; sossego e lida... / É lei da Natureza, é lei da Sorte / Que seja o mal e o bem matiz da vida!"
Na sua poética prevalece a segunda vertente mencionada, o sofrimento, o "horror", as "trevas", facto que o faz, com frequência, ansiar pela sepultura, "refúgio me promete a amiga Morte", como afirma nomeadamente.
A relação que tem com as mulheres é também melindrosa, precária. O ciúme "infernal" rouba-lhe o sono, acentua-lhe a depressão.
Bocage considera que a desventura que o oprime é fruto de um destino inexorável, irreversível, contra o qual nada pode fazer. A "Fortuna", a "Sorte", o "Fado", no seu entender, marcaram-no indelevelmente para o sofrimento atroz, como se depreende dos seguintes versos: "Chorei debalde minha negra sina", "em sanguíneo carácter foi marcado / pelos Destinos meu primeiro instante".
Outro aspecto relevante a ponderar na avaliação da poesia de Bocage é a dialéctica razão/sentimento. Com efeito, existe um conflito aberto entre a exuberância do amor, também físico, a sua entrega total, e a contenção e a frieza do racional: "Razão, de que me serve o teu socorro? / Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo; / Dizes-me que sossegue, eu peno, eu morro", ou ainda quando escreve "contra os sentidos a razão murmura".
Bocage viveu num período de transição, conturbado, em convulsão. A sua obra espelha essa instabilidade. Por um lado, reflecte as influências da cultura clássica, cultivando os seus géneros, fazendo apelo à mitologia, utilizando vocabulário genuíno; por outro lado, é um pré-romântico pois liberta-se das teias da razão, extravasa com intensidade tudo o que lhe vai na alma, torrencialmente expressa os seus sentimentos, faz a apologia da solidão.
Analisemos alguns dos sonetos de Bocage:
1. Apenas vi do dia a luz brilhante

Apenas vi do dia a luz brilhante
Lá de Túbal no empório celebrado,
Em sanguíneo carácter foi marcado
Pelos Destinos meu primeiro instante.

Aos dois lustros a morte devorante
Me roubou, terna mãe, teu doce agrado;
Segui Marte depois, e enfim meu fado,
Dos irmãos e do pai me pôs distante.

Vagando a curva terra, o mar profundo,
Longe da Pátria, longe da ventura,
Minhas faces com lágrimas inundo.

E enquanto insana multidão procura
Essas quimeras, esses bens do mundo,
Suspiro pela paz da sepultura.

Estrutura interna bipartida:
1ª parte, constituída pelas quadras e pelo 1º terceto, na qual o sujeito poético nos dá conta do infortúnio com que o Destino o marcou à nascença, ao ponto de lhe ter roubado a mãe, quando ainda era criança, e de o ter afastado da Pátria e do resto da família (pai e irmãos);
2ª parte, constituída pelo último terceto, na qual o sujeito poético, utilizando uma comparação antitética que estabelece com a «insana multidão», confessa apenas suspirar pela paz da sepultura;
Nota: talvez seja de reparar o facto de o sujeito poético não se ter coibido de utilizar o termo morte (devorante), quando referido à mãe (vv 5/6), o que evidencia o quanto, para si, foi dolorosa, ao passo que, no final, porque é uma aspiração sua, e já pacificada, utiliza um eufemismo.

Aspectos psicológicos:
- caráter sanguíneo (marcado pelos Destinos (vv 3/4))
- carente de afetos (vv 5/8)
- desejoso da morte (v 14)

Elementos neoclássicos:
- a forma (soneto)
- o vocabulário alatinado (empório, devorante, vagando, insana)
- a presença da mitologia (Túbal, Destinos, Marte)

Elementos românticos:
- o caráter autobiográfico
- o individualismo
- o tom confessional
- a crença no fatalismo de que vítima

Alguns recursos estilísticos:
- adjetivação (brilhante, celebrado, sanguíneo, devorante, terna, doce, distante, curva, profundo, insana);
- metonímia (vv 2, 7);
- hipérbato (vv 2/4, 11);
- apóstrofe (v 6);
- anáfora (v 10);
- anástrofe (vv 1, 8);
- hipérbole e perífrase (v 11);
- eufemismo (v 14).

2. Já Bocage não sou!... À cova escura

Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento;
Musa!... Tivera algum merecimento
Se um raio de razão seguisse pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria.

Outro Aretino fui... A santidade
Manchei - ... Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!

Também este poema é o resultado de uma atitude introspectiva do sujeito poético, o que determina, uma vez mais, a respectiva estrutura interna:
- nas duas quadras, o sujeito poético confessa uma vida de ultraje a Deus no passado;
- nos dois tercetos, assiste-se à confissão do arrependimento, o que impele o sujeito poético a dirigir-se à mocidade, que corria atrás da sua poesia, para que rasgue seus versos e acredite na eternidade;
Note a diferença que resulta da leitura do verso 6, considerando o ritmo heróico (marca as palavras fez e intento), ou o sáfico (marca as palavras verso, louco e intento), ambos possíveis.

Elementos neoclássicos:
- a forma (soneto)
- a presença da mitologia (Musa)
- a presença de vocabulário alatinado (estro, fantástico)
- a alusão à razão

Elementos românticos:
- o tom confessional do poema
- o tema do arrependimento
- a alusão à morte
- o tom declamatório
- a pontuação expressiva associada à função emotiva

Alguns recursos estilísticos:
- adjetivação (escura, desfeito, leve, dura, vã, louco, pura, fria, alto, fantástico, ímpia);
- anástrofe (v 1/2, 6, 11/12);
- metonímia (v 3);
- antítese (v 4);
- apóstrofe (v 7, 13);
- metáfora (v 11).

3. Olha, Marília, as flautas dos pastores

Olha, Marília, as flautas dos pastores
Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores?

Vê como ali beijando-se os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores.

Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Ora nas folhas a abelhinha pára,
Ora nos ares sussurrando gira.

Que alegre campo! Que manhã tão clara!
Mas ah! Tudo o que vês, se eu não te vira,
Mais tristeza que a noite me causara.

Descrição de um locus amoenus ao longo de quase todo o soneto (até ao final do 1º terceto), muito ao gosto clássico. No entanto, o sujeito poético esclarece que toda aquela paisagem paradisíaca só é possível na presença da amada (v 13/14).
Esta atitude de apresentar a natureza como reflexo do estado da alma do poeta, em função da presença ou ausência da amada, é uma característica romântica.

Elementos neoclássicos:
- a forma (soneto)
- o vocabulário alatinado ( cadente, Zéfiros, ósculos)
- a presença da mitologia (Amores (Cupidos, filhos de Marte e de Vênus))

Elementos românticos:
- a natureza como reflexo do estado da alma do poeta (em função da presença ou ausência da amada);
- a pontuação subjetiva (abundância de exclamações);
- a presença do rouxinol e da noite;
- o amor sensual

Alguns recursos estilísticos:
- apóstrofe (v 1, 3, 5);
- adjetivação (cadentes, ardentes, alegre, clara);
- aliteração (sobretudo de sons fricativos, sibilantes e chiantes, e de vibrantes);
- personificação (v 3/4, 7/8, 9/11);
- anáfora (v 1, 3, 10/11);
- anástrofe (v 7/9...);
- hipérbole (v 13/14);
- metáfora (v 4, 9, 11);
- sinestesia (presença de várias sensações: auditivas, visuais, táteis, gustativas, olfativas).

4. Oh retrato da Morte, oh Noite amiga

Oh retrato da Morte, oh Noite amiga,
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha de meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor que a ti somente os diga,
Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga.

E vós, oh cortesãos da escuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.

Estrutura interna - dois momentos distintos:
- as duas quadras, em que o sujeito poético se dirige à «Noite amiga», «retrato da Morte»; neste primeiro momento, assistimos à caracterização da noite (retrato da Morte, amiga, testemunha, confidente) e ao pedido para que, uma vez mais, ouça os seus desabafos, os seus lamentos;
- os dois tercetos, em que se dirige aos "mochos piadores", "cortesãos da escuridade" e "inimigos da claridade"; neste segundo momento, o poeta suplica aos mochos que, com a sua "medonha sociedade", o ajudem a fartar o seu coração de horrores;
- O estado de alma do poeta é o resultado da falta de afetos, a conseqüência da "cruel" que dorme (ao contrário dele que passa uma noite de insônia) e que o obriga a delirar (v 8).

Elementos neoclássicos:
- a forma (soneto)
- a presença da mitologia (Amor (Cupido, filho de Marte e de Vênus))
- o vocábulo escuridade

Elementos românticos:
- o tom confessional do poema uma certa linguagem teatral (tom declamatório com presença de algumas interjeições e de exclamações);
- o uso de vocabulário tétrico (Morte, escuridão, pranto, desgostos, cruel, escuridade, Fantasmas, piadores, medonha, horrores) que nos aproxima dum ambiente próprio dum locus horrendus.

Alguns recursos estilísticos:
- personificação da Noite e dos mochos (v 9);
- apóstrofe (v 1/4, 6/7, 9/12);
- elipse (v 3);
- anástrofe (v 4/5, 8, 12);
- adjetivação (amiga, calada, antiga, pio, vagos, piadores, inimigos, medonha);
- reiteração (v 7, 13/14 (através da anáfora));
- anáfora (v 7, 13/14);
- sinestesia (v 3, 5, 7, 9, 11/12);
- metáfora (v 1, 4, 6, 9, 10, 13);
- comparação (v 11);
Note a existência de dois versos sáficos (com acento rítmico nas 4ª, 8ª e 10ª sílabas métricas): 8, 14.

O ARCADISMO NO BRASIL
Tomás Antônio Gonzaga
Tomás Antônio Gonzaga (Miragaia, Porto, 11 de agosto de 1744 — Ilha de Moçambique, 1810), cujo nome arcádico é Dirceu, foi um jurista, poeta e ativista político luso-brasileiro. Considerado o mais proeminente dos poetas árcades, é ainda hoje estudado em escolas e universidades por seu "Marília de Dirceu" (versos notadamente árcades feitos para sua amada).
Características literárias
A poesia de Tomás Antônio Gonzaga apresenta as típicas características árcades e neoclássicas: o pastoril, o bucólico, a Natureza amena, o equilíbrio etc. Paralelamente, possui características pré-românticas (principalmente na segunda parte de Marília de Dirceu, escrita na prisão): confissões de sentimento pessoal, ênfase emotiva estranha aos padrões do neoclassicismo, descrição de paisagens brasileiras, etc.
O convívio com o Iluminismo põe em seu estilo a preocupação em atenuar as tensões e racionalizar os conflitos.
Tomás Antônio Gonzaga escreveu versos marcados por expressão própria, pela harmonização dos elementos racionais e afetivos e por um leve toque de sensualidade. Segundo Alfredo Bosi, Gonzaga está acima de tudo preocupado em "achar a versão literária mais justa dos seus cuidados". Assim, "a figura de Marília, os amores ainda não realizados e a mágoa da separação entram apenas como 'ocasiões' no cancioneiro de Dirceu", o que diferencia o autor dos seus futuros colegas românticos.

 Marília de Dirceu
As liras a sua pastora idealizada refletem a trajetória do poeta, na qual a prisão atua como um divisor de águas (a segunda parte do livro é contada dentro da prisão). Antes do encarceramento, num tom de fidelidade, canta a ventura da iniciação amorosa, a satisfação do amante, que, valorizando o momento presente, busca a simplicidade do refúgio na natureza amena, que ora é européia e ora mineira. Depois da reclusão, num tom trágico de desalento, canta o infortúnio, a injustiça (ele se considera inocente, portanto, injustiçado), o destino e a eterna consolação no amor da figura de Marília. São compostas em redondilhas menor ou decassílabos quebrados. Expressam a simplicidade e gracioso lirismo íntimo, decorrentes da naturalidade e da singeleza no trato dos sentimentos e da escolha lingüística. Ao delegar posição poética a um campesino, sob cuja pele se esconde um elemento civilizado, Gonzaga demonstra mais uma vez suas diferenças com a filosofia romântica, pois segue o descrito nas regras para a confecção de éclogas nos manuais de poética da época, que instruem aos poetas que buscam a superação dos antigos, imitando-os, a utilizações de eu-lírico que se aproximem as figuras de pastores, caçadores, hortelãos e vaqueiros.
Marília é ora morena, ora loira. O que comprova não ser a pastora, Maria Dorotéia na vida real, mas uma figura simbólica que servia à poesia de Tomás Antônio Gonzaga. É anacronismo destinar ao sentimento existente entre o poeta e Maria Dorotéia a motivação para a confecção dos poemas, tendo em vista que esse pensamento só surgiu com o pensamento Romântico, no século XIX. É mais cabível a teoria de inspiração no ideal de emulação, que configurava o sentimento poético da época, baseado nas filosofias retórico-poéticas vigentes, em que o poeta, seguindo inúmeras regras de confecção, "imitava" os poetas antigos procurando superá-los. Muitos pouco conhecedores de literatura podem acreditar que o poeta cai em contradições, ora assumindo a postura de pastor que cuida de ovelhas e vive numa choça no alto do monte, ora a do burguês Dr. Tomás Antônio Gonzaga, juiz que lê altos volumes instalados em espaçosa mesa, mas o fazem por analisar os poemas com critérios anacrônicos à época, analisam com pensamentos surgidos após o Romantismo, textos que o precedem.
É interessante atentar para alguns aspectos dessa obra de Gonzaga. Cada lira é um dialogo de Dirceu com sua pastora Marília, mas, embora a obra tenha a estrutura de um diálogo, só Dirceu fala (trata-se de um monólogo), chamando Marília em geral com vocativos. Como bem lembra o crítico Antônio Candido, o melhor título para a obra seria Dirceu de Marília, mas o patriarcalismo de Gonzaga nunca lhe permitiria pôr-se como a coisa possuída. Sem esquecer que Tomás Antônio Gonzaga morreu de paixão.Ele foi mandando para a ilha das Cobras no Rio de Janeiro,depois para Moçambique na África.Casando-se com uma filha de um mercador de escravos;diga-se de passagem:Logo ele que era totalmente contra a escravidão.
Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga
Análise da obra

É a lírica amorosa mais popular da literatura de língua portuguesa. Segundo o autor do prefácio da obra (Lisboa - 1957), Rodrigues Lapa, não é a persistência dos elementos tradicionais da poesia, mais ou menos pessoalmente elaborados, que nos dão definitivamente o seu estilo. Este consiste, sobretudo nas novidades sentimentais e concepcionais que trouxe para uma literatura, derrancada no esforço de remoer sem cessar a antiguidade. Um amor sincero, na idade em que o homem sente fugir-lhe o ardor da mocidade, e uma prisão injusta e brutal - foram estas duas experiências que fizeram desferir à lira de Dirceu acentos novos. “Estamos ainda convencidos de que o clima americano, mais arejado e mais forte, contribuiu poderosamente para a revelação desse estilo, em que se sentem já nitidamente os primeiros rebates do romantismo e a impressão iniludível das idéias do tempo.”
Dividido em liras que a partir da publicação do poema em livro, em 1792, foram declamadas, musicadas e cantadas em serestas e saraus pelo Brasil afora. Referindo-se à lira III da parte III, Manuel Bandeira escreveu : "Nessa lira esqueceu o Poeta a paisagem e a vida européia, os pastores, os vinhos, o azeite e as brancas ovelhinhas, esqueceu o travesso deus Cupido, e a sua poesia reflete com formosura a natureza e o ambiente social brasileiro, expressos nos termos da terra com um fino gosto que não tiveram seus precursores".
Existem três fatores básicos que contribuíram para a individualidade poética de Gonzaga: o romance com a menina Maria Dorotéia; a prisão injusta e brutal, como inconfidente; e a magia da natureza e do clima tropical.
A obra se divide em duas partes (há uma terceira, cuja autenticidade é contestada por alguns críticos):

Na 1ª parte estão os poemas escritos na época anterior à prisão do autor. Nela predominam as composições convencionais, as características arcádicas: o pastor Dirceu celebra a beleza de Marília em pequenas odes anacreônticas. Em algumas liras, entretanto, as convenções mal disfarçam a confissão amorosa do amor: a ansiedade de um quarentão apaixonado por uma adolescente; a necessidade de mostrar que não é um qualquer e que merece sua amada; os projetos de uma sossegada vida futura, rodeado de filhos e bem cuidado por suas mulher etc. Nesta 1ª parte das liras o autor denota preferência pelo verso leve, tratado com facilidade.

Já a 2ª parte (e a terceira, se autêntica), foi escrita na prisão da ilha das Cobras, e os poemas exprimem a solidão de Dirceu, saudoso de Marília. Encontramos aí a melhor poesia de Gonzaga. Entende-se aqui que as características pré-românticas se fazem sentir mais agudamente. O sentimento da injustiça, da solidão, da saudade de Marília, o temor do futuro e a perspectiva da morte rompem constantemente o equilíbrio clássico. As convenções, embora ainda presentes, não sustentam o equilíbrio neoclássico. O tom confessional e o pessimismo prenunciam o emocionalismo romântico. Nesta 2ª parte das liras, há o emprego do verbo no passado: o poeta vive de lembranças e recordações passadas.

Em Marília de Dirceu, há a refinada simplicidade neoclássica: uma dicção aparentemente direta e espontânea, cheia de imagens graciosas e de alegorias mitológicas; um ritmo agradável, suavizado pelos versos curtos, pela alternância de decassílabos e hexassílabos, pelo uso do refrão e dos versos brancos.

A estrutura métrica das liras são a versificação pouco variada e, a par dos versos de quatro sílabas, melhor ditos células métricas, vêm à redondilha menor, com acentuação na 2ª e 5ª sílabas; o heróico quebrado, sempre em combinação; a redondilha maior; o decassílabo.

Temas e formas
I
1 Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
2 que viva de guardar alheio gado,
3 de tosco trato, de expressões grosseiro,
4 dos frios gelos e dos sóis queimado.
5 Tenho próprio casal e nele assisto;
6 dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
7 das brancas ovelhinhas tiro o leite
8 e mais as finas lãs, de que me visto.
9 Graças, Mar flua bela,
10 graças à minha estrela!
11 Eu vi o meu semblante numa fonte:
12 dos anos inda não está cortado;
13 Os pastores que habitam este monte
14 respeitam o poder do meu cajado.
15 Com tal destreza toco a sanfoninha,
16 que inveja até me tem o próprio Alceste:
17 ao som dela concerto a voz celeste,
18 nem canto letra que não seja minha.
19 graças, Marília bela,
20 graças à minha estrela!

Uma leitura atenta do fragmento transcrito permite-nos identificar algumas constantes das Liras:

1. Pastoralismo — bucolismo: na exaltação da vida pastoril, campestre; no entendimento de que a felicidade e a beleza decorrem da vida no campo. É da convenção arcádica o poeta identificar-se artisticamente como pastor e identificar sua musa como pastora. Observe estas palavras: “vaqueiro", “gado”, “ovelhinhas”, “fonte", “pastores”, “monte”, “cajado”.

2. Otimismo — narcisismo: no estribilho, o poeta manifesta-se satisfeito com o próprio destino: “Graças, Marília bela, / Graças à minha estrela”. É evidente o propósito de auto-valorização (narcisismo): nos versos 11 e 12; na afirmação da juventude: nos versos 13 e 14; na alusão à virilidade; e na exaltação da sensibilidade artística: nos versos 15 e 16.

3. Ideal burguês de vida: na afirmação da condição de proprietário, no orgulho pela posse da terra (versos de 5 a 8), apóia-se o poeta para expressar a consciência de superioridade sobre “o vaqueiro que viva de guardar alheio gado”, que o poeta deprecia (versos 3 e 4). Observa-se esse ideal também no verso 19:

Que prazer não terão os pais ao verem
Com as mães um dos filhos abraçados;
Jogar outros a luta, outros correrem
Nos cordeiros montados!
Que estado de ventura!

4. Simplicidade: observe o predomínio da ordem direta da frase e a clareza da expressão, sem muitas figuras de linguagem, próxima do ritmo da prosa.

II

A minha amada
é mais formosa
que branco lírio,
dobrada rosa,
que o cinamomo,
quando matiza
co’a folha a flor:
Vênus não chega
ao meu amor.
Vasta campina,
de trigo cheia,
quando na sesta
co vento ondeia,
ao seu cabelo,
quando flutua,
não é igual.
Tem a cor negra,
mas quanto val!
(...)

III

(...)

Aqui um regato
corria, sereno,
por margens cobertas
de flores e feno;
à esquerda se erguia
um bosque fechado;
e o tempo apressado,
que nada respeita,
já tudo mudou.
São estes os sítios?
São estes; mas eu
o mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.

5. Os dois textos revelam a vertente mais convencional da poesia de Gonzaga: a aproximação com o estilo rococó, marcado pela graça, leveza e frivolidade, pelos idílios campestres, pela natureza delicada e aprazível (locus amoenus). Observe os metros curtos, melódicos que emolduram a suavidade do quadro descrito, como os movimentos sutis de um minueto, dançado na Corte de Luís XV, na época de ouro do Rococó.

6. Mas, em alguns momentos, avulta o realismo descritivo, captando a rusticidade da paisagem e da vida da Colônia. Exemplo marcante é o fragmento que segue. Observe as referências à mineração e à agricultura:

IV

Tu não verás, Marília, cem cativos
tirarem o cascalho e a rica terra,
ou dos cercos dos rios caudalosos,
ou da minada serra.
Não verás separar ao hábil negro
do pesado esmeril a grossa areia,
e já brilharem os granetes de oiro
no fundo da batéia.
Não verás derrubar os virgens matos,
queimar as capoeiras inda novas,
servir de adubo à terra a fértil cinza,
lançar os grãos nas covas.
Não verás enrolar negros pacotes
das secas folhas do cheiroso fumo;
nem espremer entre as dentadas rodas
da doce cana o sumo.
(...)

  V

Com os anos, Marília, o gosto falta,
e se entorpece o corpo já cansado:
triste, o velho cordeiro está deitado,
e o leve filho, sempre alegre, salta.
A mesma formosura
é dote que só goza a mocidade:
rugam-se as faces, o cabelo alveja,
mal chega a longa idade.
Que havemos de esperar Marília bela?
que vão passando os florescentes dias?
As glórias que vêm tarde, já vêm frias,
e pode, enfim, mudar-se a nossa estrela.
Ah! não, minha Marília,
aproveite-se o tempo, antes que faça
o estrago de roubar ao corpo as forças,
e ao semblante a graça!

7. O texto V, dos mais belos das liras, manifesta a atitude clássica, o carpe diem (= “aproveita o dia”). Na primeira estrofe, o poeta expressa a consciência da fugacidade do tempo. Na estrofe seguinte, propõe à Marília a fruição dos prazeres da vida, antes que o tempo fizesse o estrago de “roubar ao corpo [do poeta] as forças, e ao semblante [de Marília], a graça.

8. Nas liras escritas no cárcere, predomina o lirismo lamuriento, pré-romântico, mas submetido ainda à disciplina e sobriedade neoclássicas. Nas últimas liras, nota-se que, ainda quando nem os céus acudiam o poeta em suas atribulações, a expressão de suas dores é contida:

   VI

Porém se os justos céus, por fins ocultos,
em tão tirano mal me não socorrem,
verás então que os sábios,
bem como vivem, morrem.
Eu tenho um coração maior que o mundo,
tu, formosa Marília, bem o sabes:
um coração, e basta,
onde tu mesma cabes.

9. As contradições também ocorrem: ora Dirceu se diz pastor, ora se diz magistrado; Marília é muitas vezes pretexto para o exercício poético de Gonzaga e seus traços variam:

Aqui Marília tem cabelos pretos:

VII
(...)
Os seus compridos cabelos,
que sobre as costas ondeiam,
são que os de Apolo mais belos,
mas de loura cor não são.
Têm a cor da negra noite,
e com o branco do rosto
fazem, Marília, um composto
da mais formosa união.
(...)
Aqui tem cabelos loiros:

VIII
(...)
Os teus olhos espalham luz divina,
a quem a luz do sol em vão se atreve;
papoila ou rosa delicada e fina
te cobre as faces, que são cor da neve.
Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
teu lindo corpo bálsamos vapora.
(...)

Na lira 64, Gonzaga refere-se a Tiradentes depreciativamente. Parece que as expressões ofensivas com que se dirige ao alferes foram ditadas pelo propósito de minimizar seu comprometimento na Inconfidência, já que o processo ainda estava em curso. É o que argumentam os admiradores do poeta, na tentativa de “salvá­lo” como vulto histórico e inconfidente.

IX

Ama a gente assisada (1) (1) ajuizada
a honra, a vida, o cabedal tão pouco,
que ponha uma ação destas (2) (2) a Inconfidência
nas mãos dum pobre, sem respeito e louco? (3) (3) Tiradentes
E quando a comissão lhe confiasse,
não tinha pobre soma,
que por paga ou esmola lhe mandasse?

X

O mesmo autor do insulto
mais a riso do que a terror me move;
deu-lhe nesta loucura,
podia-se fazer Netuno ou Jove.
A prudência é tratá-lo por demente;
ou prendê-lo, ou entregá-lo,
para dele zombar a moça gente.

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