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Realismo- Prosa III

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Eça de Queiroz
O CONTISTA
Eça escreveu um total de 16 contos, publicados esparsamente em periódicos de 1874 a 1898. Doze desses contos foram reunidos pela primeira vez em livro apenas em 1902, sob o título Contos – portanto, dois anos após sua morte.


Essa escassa produção mostra-nos bem que o conto não estava entre suas formas prediletas, posto que só ocasionalmente a ele se dedicou. A crítica reconhece em seus contos um espelho do seu gênio e um dos grandes momentos de sua criação literária. Os contos revelam um crítico excepcional do atrasado e endêmico Portugal. Eça é um reformista de costumes e mentalidades de um Portugal que ele não suportava observar e vivenciar.


O texto José Matias: um conto que reflete a preocupação realista/naturalista, análise psicológica e social. O conto reflete o choque entre o Romantismo e o Realismo, ou entre o idealismo romântico e o materialismo realista. Eça se utiliza de cuidadosa e minuciosa observação da realidade, expõe essa realidade de forma contundente, desfazendo as idealizações e mitos tão caros ao Romantismo.




JOSÉ MATIAS - ENREDO COMENTADO

Este conto apresenta-nos uma insólita intriga amorosa, argumento que serve de pretexto para a crítica ao ultra-romantismo exacerbado e para a exaltação da estética realista. O narrador é declaradamente racional, que comunga da causa e o efeito. Não suporta e não compreende o comportamento do amigo José Matias. A narrativa é estruturada numa concepção lógica que, ironicamente, traz um personagem que não se encaixa nessa lógica.


Veja na leitura completa do conto que Eça aponta para uma nova postura da literatura e da arte como um todo. Algo que já vinha fazendo desde as Cenas Portuguesas. O leitor se irrita com a postura passiva e comportamento “incompreensível” de José Matias. O narrador se serve de todos os postulados filosóficos para tentar justificar os sentimentos e atitudes do personagem.


Esta história é contada pelo narrador que, ao estabelecer diálogo com um amigo seu acerca do funeral de José Matias (amigo comum), aproveita a oportunidade para contar a história amorosa do falecido. Todo o relato é feito essencialmente por meio da cena dialogada. O conto é uma espécie de “falso diálogo”, porque só o narrador tem a palavra.


O amigo-narrador, professor de filosofia, conhecia José Matias dos tempos de Coimbra e, assim, a analepse (a biografia é contada a partir do final, isto é, do enterro de José Matias...) em que se conta a história do personagem a partir de Coimbra de 1865. Há, portanto, uma clara intenção crítica face aos eventos sócio-literários da época. A história amorosa narrada fala-nos de um amor somente contemplativo, espiritual, platônico, idealizado e cortês, que José Matias cultiva por uma mulher – Elisa. Esse amor era correspondido, mas socialmente impossível porque Elisa era casada. Mas, à morte do primeiro marido, ela suplica a José Matias que case com ela. Como este recusa, consumido por uma dúvida existencial, Elisa volta a casar. A partir daí, o protagonista afoga-se na bebida e gasta tudo o que tem. Entretanto, o segundo marido da sua amada morre, e esta regressa a Lisboa, tendo um amante, o Apontador de Obras. José Matias morre, de congestão pulmonar, quando segue o amante, por recear que ele não era fiel a Elisa. Elisa é caracterizada como uma mulher sensual e carnal. José Matias é representado como um homem invulgar, um ultra-romântico dotado de hiperespiritualismo doentio. Ao contar a história, o narrador critica esse amor totalmente desajustado que o seu amigo defendia. Temos aqui, claramente evidenciada, a oposição Realismo / Romantismo.


A narrativa centra sua atenção de tempo na transição entre o Romantismo e o começo do Realismo. Imagine, o conto foi publicado em 1897, e o Romantismo ainda estava vigoroso, enquanto o resto da Europa já estava mergulhada no avanço da segunda Revolução Industrial e a literatura refletia sua força psicológica e social. Eça não suportava tamanho absurdo. O seu primoroso conto traz esse viés psicológico e social. Concluímos, no final, que o enterro de José Matias simboliza o declínio de uma estética desajustada e ridícula, relativamente aos valores da nova sociedade, e o florescer de uma nova corrente que pretere os valores em que José Matiasa creditava. Depreende-se, portanto, deste conto uma crítica ao defasamento entre o que a sociedade oferece e o que a literatura pratica.


Sendo a sociedade materialista, não se compreende que a literatura continue a ser idealista e sentimental. A literatura, que deveria ser a pioneira na acusação dessa sociedade materialista, alheia-se dela e vive num mundo de fantasia. José Matias foi um típico voyeur(contentou-se em contemplar e não vivenciou o seu grande amor). É o máximo da ironia trágica de Eça sobre a sociedade despreparada e atrasada para o século XX . . .




ALGUNS TRECHOS FUNDAMENTAIS.


O INICIO

LINDA tarde, meu amigo!... Estou esperando o enterro do José Matias – do José Matias de Albuquerque, sobrinho do


Visconde de Garmilde1... O meu amigo certamente o conheceu – um rapaz airoso, louro como uma espiga, com um bigode crespo de paladino sobre uma boca indecisa de contemplativo, destro cavaleiro, duma elegância sóbria e fina. E espírito curioso, muito afeiçoado às idéias gerais, tão penetrante que compreendeu a minha Defesa da Filosofia Hegeliana! Esta imagem do José Matias data de 1865: porque a derradeira vez que o encontrei, numa tarde agreste de Janeiro, metido num portal da Rua de S. Bento, tiritava dentro duma quinzena cor de mel, roída nos cotovelos, e cheirava abominàvelmente a aguardente.




O FLUXO NARRATIVO


EM IMAGENS CINEMATOGRÁFICAS

Quando se formou, como lhe morrera o pai, depois a mãe, delicada e linda senhora de quem herdara cinqüenta contos, partiu para Lisboa, alegrar a solidão dum tio que o adorava, o general Visconde de Garmilde. O meu amigo sem dúvida se lembra dessa perfeita estampa de general clássico, sempre de bigodes terrìficamente encerados, as calças cor de flor de alecrim desesperadamente esticadas pelas presilhas sobre as botas coruscantes, e o chicote debaixo do braço com a ponta a tremer, ávida de vergastar o Mundo! Guerreiro grotesco e deliciosamente bom... O Garmilde morava então em Arroios, numa casa antiga de azulejos, com um jardim, onde ele cultivava apaixonadamente canteiros soberbos de


dálias. Esse jardim subia muito suavemente até ao muro coberto de hera que o separava de outro jardim, o largo e belo jardim de rosas do Conselheiro Matos Miranda, cuja casa, com um arejado terraço entre dois torrãozinhos amarelos, se erguia no cimo do outeiro e se chamava a casa da “Parreira”. O meu amigo conhece (pelo menos de tradição, como se conhece Helena de Tróia ou Inês de Castro) a formosa Elisa Miranda, a Elisa da Parreira... Foi a sublime beleza romântica de Lisboa, nos fins da Regeneração.



AMOR A PRIMEIRA VISTA

“Era no Outono, quando a imagem tua


À luz da Lua...”


Pois, como nessa estrofe, o pobre José Matias, ao regressar da praia da Ericeira em Outubro, no Outono, avistou Elisa Miranda, uma noite no terraço, à luz da Lua! O meu amigo nunca contemplou aquele precioso tipo de encanto Lamartiniano. Alta, esbelta, ondulosa, digna da comparação bíblica da palmeira ao vento. Cabelos negros, lustrosos e ricos, em bandós ondeados. Uma carnação de camélia muito fresca. Olhos negros, líquidos, quebrados, tristes, de longas pestanas... Ah! Meu amigo, até eu, que já então laboriosamente anotava Hegel, depois de a encontrar numa tarde de chuva esperando a carruagem à porta do Seixas, a adorei durante três exaltados dias e lhe rimei um soneto! Não sei se o José Matias lhe dedicou sonetos. Mas todos nós, seus amigos,percebemos logo o forte, profundo, absoluto amor que concebera, desde a noite de Outono, à luz da Lua, aquele coração, que em Coimbra considerávamos de esquilo! Bem compreende que homem tão comedido e quieto não se exalou em suspiros públicos.



JOSÉ MATIAS APAIXONADO:


O NARRADOR COM INVEJA

Bem me recordo duma tarde que o visitei em Arroios, depois de voltar do Alentejo. Era um domingo de Julho. Ele ia jantar com uma tia-avó, uma D. Mafalda Noronha, que vivia em Benfica, na quinta dos Cedros, onde habitualmente


jantavam também aos domingos o Matos Miranda e a divina Elisa. Creio mesmo que só nessa casa ela e o José Matias se encontravam, sobretudo com as facilidades que oferecem pensativas alamedas e retiros de sombra. As janelas do quarto do José Matias abriam sobre o seu jardim e sobre o jardim dos Mirandas: e, quando entrei, ele ainda se vestia, lentamente. Nunca admirei, meu amigo, face humana aureolada por felicidade mais segura e serena! Sorria iluminadamente quando me abraçou, com um sorriso que vinha das profundidades da alma iluminada; sorria ainda deliciadamente enquanto eu lhe contei todos os meus desgostos no Alentejo: sorriu depois extàticamente, aludindo ao calor e enrolando um cigarro distraído; e sorriu sempre, enlevado, a escolher na gaveta da cómoda, com escrúpulo religioso, uma gravata de seda branca. E a cada momento, irresistìvelmente, por um hábito já tão inconsciente como o pestanejar, os seus olhos risonhos, calmamente enternecidos, se voltavam para as vidraças fechadas... De sorte que, acompanhando aquele raio ditoso, logo descobri, no terraço da casa da Parreira, a divina Elisa, vestida de claro, com um chapéu branco, passeando preguiçosamente, calçando pensativamente as luvas, e espreitando também as janelas do meu amigo, que um lampejo oblíquo do Sol ofuscava de manchas de ouro.



AMOR PLATONICO

Nunca eu vira um homem deitar, com tão profundo êxtase, água-de-colónia no lenço! E depois de enfiar a sobrecasaca, de lhe espetar uma soberba rosa, foi com inefável emoção, sem reter um delicioso suspiro, que abriu largamente, solenemente, as vidraças! Introibo ad altarem Deœ! Eu permaneci discretamente enterrado no sofá. E, meu caro amigo, acredite! Invejei aquele homem à janela, imóvel, hirto na sua adoração sublime, com os olhos, e a alma, e todo o ser cravados no terraço, na branca mulher calçando as luvas claras, e tão indiferente ao Mundo como se o Mundo fosse apenas o ladrilho que ela pisava e cobria com os pés! E este enlevo, meu amigo, durou dez anos, assim esplêndido, puro, distante e imaterial! Não ria... Decerto se encontravam na quinta de D. Mafalda: decerto se escreviam, e transbordantemente, atirando as cartas por cima do muro que separava os dois quintais: mas nunca, por cima das heras desse muro procuraram a rara delícia duma conversa roubada ou a delícia ainda mais perfeita dum silêncio escondido na sombra. E nunca trocaram um beijo...
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