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Romantismo - Poesia

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Gonçalves Dias
Canção do exílio
Kennst du das Land, wo die Citronen blühen,

Im dunkeln Laub die Gold-Orangen glühen?
Kennst du es wohl? — Dahin, dahin!
Möchtl ich... ziehn. *
Goethe
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.


Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.


Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.


Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite —
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.


Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Coimbra - julho 1843.


* - "Conheces a região onde florescem os limoeiros ?

laranjas de ouro ardem no verde escuro da folhagem;

conheces bem ? Nesse lugar,

eu desejava estar"

(Mignon, de Goethe

Gonçalves Dias


________________________________________
O canto do guerreiro


I

Aqui na floresta
Dos ventos batida,
Façanhas de bravos
Não geram escravos,
Que estimem a vida
Sem guerra e lidar.
— Ouvi-me, Guerreiros,
— Ouvi meu cantar.
II
Valente na guerra,
Quem há, como eu sou?
Quem vibra o tacape
Com mais valentia?
Quem golpes daria
Fatais, como eu dou?
— Guerreiros, ouvi-me;
— Quem há, como eu sou?
III
Quem guia nos ares
A frecha emplumada,
Ferindo uma presa,
Com tanta certeza,
Na altura arrojada
onde eu a mandar?
— Guerreiros, ouvi-me,
— Ouvi meu cantar.
IV
Quem tantos imigos
Em guerras preou?
Quem canta seus feitos
Com mais energia?
Quem golpes daria
Fatais, como eu dou?
— Guerreiros, ouvi-me:
— Quem há, como eu sou?
V
Na caça ou na lide,
Quem há que me afronte?!
A onça raivosa
Meus passos conhece,
O imigo estremece,
E a ave medrosa
Se esconde no céu.— Quem há mais valente,
— Mais destro que eu?

VI
Se as matas estrujo
Co’os sons do Boré,
Mil arcos se encurvam,
Mil setas lá voam,
Mil gritos reboam,
Mil homens de pé
Eis surgem, respondem
Aos sons do Boré!
— Quem é mais valente,
— Mais forte quem é?

VII
Lá vão pelas matas;
Não fazem ruído:
O vento gemendo
E as matas tremendo
E o triste carpido
Duma ave a cantar,
São eles — guerreiros,
Que faço avançar.

VIII
E o Piaga se ruge
No seu Maracá,
A morte lá paira
Nos ares frechados,
Os campos juncados
De mortos são já:
Mil homens viveram,
Mil homens são lá.
E então se de novo
Eu toco o Boré;
Qual fonte que salta
De rocha empinada,
Que vai marulhosa,
Fremente e queixosa,
Que a raiva apagada
De todo não é,
Tal eles se escoam
Aos sons do Boré.
— Guerreiros, dizei-me,
— Tão forte quem é?

I-Juca-Pirama

I
No meio das tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos — cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d'altiva nação;
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
Temíveis na guerra, que em densas coortes
Assombram das matas a imensa extensão.
São rudos, severos, sedentos de glória,
Já prélios incitam, já cantam vitória,
Já meigos atendem à voz do cantor:
São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na boca das gentes,
Condão de prodígios, de glória e terror!

As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,
As armas quebrando, lançando-as ao rio,
O incenso aspiraram dos seus maracás:
Medrosos das guerras que os fortes acendem,
Custosos tributos ignavos lá rendem,
Aos duros guerreiros sujeitos na paz.

No centro da taba se estende um terreiro,
Onde ora se aduna o concílio guerreiro
Da tribo senhora, das tribos servis:
Os velhos sentados praticam d'outrora,
E os moços inquietos, que a festa enamora,
Derramam-se em torno dum índio infeliz.

Quem é? — ninguém sabe: seu nome é ignoto,
Sua tribo não diz: — de um povo remoto
Descende por certo — dum povo gentil;
Assim lá na Grécia ao escravo insulano
Tornavam distinto do vil muçulmano
As linhas corretas do nobre perfil.


Por casos de guerra caiu prisioneiro
Nas mãos dos Timbiras: — no extenso terreiro
Assola-se o teto, que o teve em prisão;
Convidam-se as tribos dos seus arredores,
Cuidosos se incumbem do vaso das cores,
Dos vários aprestos da honrosa função.

Acerva-se a lenha da vasta fogueira,
Entesa-se a corda de embira ligeira,
Adorna-se a maça com penas gentis:
A custo, entre as vagas do povo da aldeia
Caminha o Timbira, que a turba rodeia,
Garboso nas plumas de vário matiz.
Entanto as mulheres com leda trigança,
Afeitas ao rito da bárbara usança,
O índio já querem cativo acabar:
A coma lhe cortam, os membros lhe tingem,
Brilhante enduape no corpo lhe cingem,
Sombreia-lhe a fronte gentil canitar.

II
Em fundos vasos d'alvacenta argila
ferve o cauim;
Enchem-se as copas, o prazer começa,
reina o festim.
O prisioneiro, cuja morte anseiam,
sentado está,
O prisioneiro, que outro sol no ocaso
jamais verá!

A dura corda, que lhe enlaça o colo,
mostra-lhe o fim
Da vida escura, que será mais breve
do que o festim!

Contudo os olhos d'ignóbil pranto
secos estão;
Mudos os lábios não descerram queixas
do coração.
Mas um martírio, que encobrir não pode,
em rugas faz
A mentirosa placidez do rosto
na fronte audaz!

Que tens, guerreiro? Que temor te assalta
no passo horrendo?
Honra das tabas que nascer te viram,
folga morrendo.

Folga morrendo; porque além dos Andes
revive o forte,
Que soube ufano contrastar os medos
da fria morte.


Rasteira grama, exposta ao sol, à chuva,
lá murcha e pende:
Somente ao tronco, que devassa os ares,
o raio ofende!

Que foi? Tupã mandou que ele caísse,
como viveu;
E o caçador que o avistou prostrado
esmoreceu!

Que temes, ó guerreiro? Além dos Andes
revive o forte,
Que soube ufano contrastar os medos
da fria morte.

III
Em larga roda de novéis guerreiros
Ledo caminha o festival Timbira,
A quem do sacrifício cabe as honras.
Na fronte o canitar sacode em ondas,
O enduape na cinta se embalança,
Na destra mão sopesa a ivirapeme,
Orgulhoso e pujante. — Ao menor passo

Colar d'alvo marfim, insígnia d'honra,
Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme,
Como que por feitiço não sabido
Encantadas ali as almas grandes
Dos vencidos Tapuias, inda chorem
Serem glória e brasão d'imigos feros.

“Eis-me aqui, diz ao índio prisioneiro;
“Pois que fraco, e sem tribo, e sem família,
“As nossas matas devassaste ousado,
“Morrerás morte vil da mão de um forte.”

Vem a terreiro o mísero contrário;
Do colo à cinta a muçurana desce:
“Dize-nos quem és, teus feitos canta,
“Ou se mais te apraz, defende-te.” Começa
O índio, que ao redor derrama os olhos,
Com triste voz que os ânimos comove.
IV
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo Tupi.

Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci;
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.

Já vi cruas brigas,
De tribos imigas,
E as duras fadigas
Da guerra provei;
Nas ondas mendaces
Senti pelas faces
Os silvos fugaces
Dos ventos que amei.

Andei longes terras,
Lidei cruas guerras,
Vaguei pelas serras
Dos vis Aimorés;
Vi lutas de bravos,
Vi fortes — escravos!
De estranhos ignavos
Calcados aos pés.

E os campos talados,
E os arcos quebrados,
E os piagas coitados
Já sem maracás;
E os meigos cantores,
Servindo a senhores,
Que vinham traidores,
Com mostras de paz

Aos golpes do imigo
Meu último amigo,
Sem lar, sem abrigo
Caiu junto a mi!
Com plácido rosto,
Sereno e composto,
O acerbo desgosto
Comigo sofri.

Meu pai a meu lado
Já cego e quebrado,
De penas ralado,
Firmava-se em mi:
Nós ambos, mesquinhos,
Por ínvios caminhos,
Cobertos d'espinhos
Chegamos aqui!

O velho no entanto
Sofrendo já tanto
De fome e quebranto,
Só qu'ria morrer!
Não mais me contenho,
Nas matas me embrenho,
Das frechas que tenho
Me quero valer.

Então, forasteiro,
Caí prisioneiro
De um troço guerreiro
Com que me encontrei:

O cru dessossego

Do pai fraco e cego,

Enquanto não chego,

Qual seja — dizei!





Eu era o seu guia

Na noite sombria,

A só alegria

Que Deus lhe deixou:

Em mim se apoiava,

Em mim se firmava,

Em mim descansava,

Que filho lhe sou.





Ao velho coitado

De penas ralado,

Já cego e quebrado,

Que resta? - Morrer.

Enquanto descreve

O giro tão breve

Da vida que teve,

Deixa-me viver!





Não vil, não ignavo,

Mas forte, mas bravo,

Serei vosso escravo:

Aqui virei ter.

Guerreiros, não coro

Do pranto que choro;

Se a vida deploro,

Também sei morrer.



V

Soltai-o! — diz o chefe. Pasma a turba;

Os guerreiros murmuram: mal ouviram,

Nem pode nunca um chefe dar tal ordem!

Brada segunda vez com voz mais alta,

Afrouxam-se as prisões, a embira cede,

A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo,

— Timbira, diz o índio enternecido,

Solto apenas dos nós que o seguravam:

És um guerreiro ilustre, um grande chefe,

Tu que assim do meu mal te comoveste,

Nem sofres que, transposta a natureza,

Com olhos onde a luz já não cintila,

Chore a morte do filho o pai cansado,

Que somente por seu na voz conhece.

— És livre; parte.

— E voltarei.

— Debalde.





— Sim, voltarei, morto meu pai.





— Não voltes!





É bem feliz, se existe, em que não veja,

Que filho tem, qual chora: és livre; parte!

— Acaso tu supões que me acobardo,

Que receio morrer!

— És livre; parte!





— Ora não partirei; quero provar-te

Que um filho dos Tupis vive com honra,

E com honra maior, se acaso vencem,

Da morte o passo glorioso afronta.





— Mentiste, que um Tupi não chora nunca,

E tu choraste!... parte; não queremos

Com carne vil enfraquecer os fortes.

Sobresteve o Tupi: - arfando em ondas

O rebater do coração se ouvia

Precipite. - Do rosto afogueado

Gélidas bagas de suor corriam:

Talvez que o assaltava um pensamento...

Já não... que na enlutada fantasia,

Um pesar, um martírio ao mesmo tempo,

Do velho pai a moribunda imagem

Quase bradar-lhe ouvia: - Ingrato! ingrato!

Curvado o colo, taciturno e frio,

Espectro d'homem, penetrou no bosque!




VI
— Filho meu, onde estás?


— Ao vosso lado;

Aqui vos trago provisões: tomai-as,

As vossas forças restaurar perdidas,

E a caminho, e já!





— Tardaste muito!





Não era nado o sol, quando partiste,

E frouxo o seu calor já sinto agora!





— Sim, demorei-me a divagar sem rumo,

Perdi-me nestas matas intrincadas,

Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo;

Convém partir, e já!





— Que novos males





Nos resta de sofrer? — que novas dores,

No outro fado pior Tupã nos guarda?

— As setas da aflição já se esgotaram,

Nem para novo golpe espaço intacto

Em nossos corpos resta.





— Mas tu tremes





— Talvez do afã da caça...





— Oh filho caro





Um quê misterioso aqui me fala,

Aqui no coração; piedosa fraude

Será por certo, que não mentes nunca!

Não conheces temor, e agora temes?

Vejo e sei: é Tupã que nos aflige,

E contra o seu querer não valem brios.

Partamos!... — E com mão trêmula, incerta

Procura o filho, tateando as trevas

Da sua noite lúgubre e medonha.

Sentindo o acre odor das frescas tintas,

Uma idéia fatal correu-lhe à mente...

Do filho os membros gélidos apalpa,

E a dolorosa maciez das plumas

Conhece estremecendo: — foge, volta,

encontra sob as mãos o duro crânio,

Despido então do natural ornato!...

Recua aflito e pávido, cobrindo

Às mãos ambas os olhos fulminados,

Como que teme ainda o triste velho

De ver, não mais cruel, porém mais clara,

Daquele exício grande a imagem viva

Ante os olhos do corpo afigurada.

Não era que a verdade conhecesse

Inteira e tão cruel qual tinha sido;

Mas que funesto azar correra o filho,

Ele o via; ele o tinha ali presente;

E era de repetir-se a cada instante.

A dor passada, a previsão futura

E o presente tão negro, ali os tinha;

Ali no coração se concentrava,

Era num ponto só, mas era a morte!





— Tu prisioneiro, tu?





— Vós o dissesses.





— Dos índios?





— Sim.





— De que nação?





— Timbiras





— E a muçurana funeral rompeste,

Dos falsos manitôs quebraste a maça...

— Nada fiz... aqui estou.





— Nada! —





Emudecem;





Curto instante depois prossegue o velho:

— Tu és valente, bem o sei; confesso,

Fizeste-o, certo, ou já não foras vivo!

— Nada fiz; mas souberam da existência

De um pobre velho, que em mim só vivia...

— E depois?...





—Eis-me aqui.





—Fica essa taba?





— Na direção do sol, quando transmonta.





— Longe?





— Não muito.





— Tens razão: partamos.





— E quereis ir?...





— Na direção do ocaso.







VII





“Por amor de um triste velho,

Que ao termo fatal já chega,

Vós, guerreiros, concedesses

A vida a um prisioneiro.

Ação tão nobre vos honra,

Nem tão alta cortesia

Vi eu jamais praticada

Entre os Tupis — e mas foram

Senhores em gentileza.





“Eu porém nunca vencido,

Nem os combates por armas

Nem por nobreza nos atos;

Aqui venho, e o filho trago.

Vós o dizeis prisioneiro,

Seja assim como dizeis;

Manda! vir a lenha, o fogo,

A maça do sacrifício

E a muçurana ligeira:

Em tudo o rito se cumpra!

E quando eu for só na terra,

Certo acharei entre os vossos,

Que tão gentis se revelam,

Alguém que meus passos guie;

Alguém, que vendo o meu peito

Coberto de cicatrizes,

Tomando a vez de meu filho,

De haver-me por pai se ufane!”





Mas o chefe dos Timbiras,

Os sobrolhos encrespando,

Ao velho Tupi guerreiro

Responde com torvo acento:

— Nada farei do que dizes:

É teu filho imbele e fraco!

Aviltaria o triunfo

Da mais guerreira das tribos

Derramar seu ignóbil sangue:

Ele chorou de cobarde;

Nós outros, fortes Timbiras,

Só de heróis fazemos pasto. —

Do velho Tupi guerreiro

A surda voz na garganta

Faz ouvir uns sons confusos,

Como os rugidos de um tigre,

Que pouco a pouco se assanha!







VIII





“Tu choraste em presença da morte?

Na presença de estranhos choraste?

Não descende o cobarde do forte;

Pois choraste, meu filho não és!

Possas tu, descendente maldito

De uma tribo de nobres guerreiros,

Implorando cruéis forasteiros,

Seres presa de vis Aimorés.





“Possas tu, isolado na terra,

Sem arrimo e sem pátria vagando,

Rejeitado da morte na guerra,

Rejeitado dos homens na paz,

Ser das gentes o espectro execrado;

Não encontres amor nas mulheres,

Teus amigos, se amigos tiveres,

Tenham alma inconstante e falaz!





“Não encontres doçura no dia,

Nem as cores da aurora te ameiguem,

E entre as larvas da noite sombria

Nunca possas descanso gozar:

Não encontres um tronco, uma pedra,

Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,

Padecendo os maiores tormentos,

Onde possas a fronte pousar.





“Que a teus passos a relva se torre;

Murchem prados, a flor desfaleça,

E o regato que límpido corre,

Mais te acenda o vesano furor;

Suas águas depressa se tornem,

Ao contacto dos lábios sedentos,

Lago impuro de vermes nojentos,

Donde festas como asco e terror!





“Sempre o céu, como um teto incendido,

Creste e punja teus membros malditos

E o oceano de pó denegrido

Seja a terra ao ignavo tupi!

Miserável, faminto, sedento,

Manitôs lhe não falem nos sonhos,

E do horror os espectros medonhos

Traga sempre o cobarde após si.





“Um amigo não tenhas piedoso

Que o teu corpo na terra embalsame,

Pondo em vaso d'argila cuidoso

Arco e frecha e tacape a teus pés!

Sé maldito, e sozinho na terra;

Pois que a tanta vileza chegaste,

Que em presença da morte choraste,

Tu, cobarde, meu filho não és."







IX

Isto dizendo, o meserando velho

A quem Tupã tamanha dor, tal fado

Já nos confins da vida reservara,

Vai com trêmulo pé, com as mãos já frias

Da sua noite escura as densas trevas

Palpando. - Alarma! alarma! - O velho para.

O grito que escutou é voz do filho,

Voz de guerra que ouviu já tantas vezes

Noutra quadra melhor. - Alarma! alarma!

— Esse momento só vale apagar-lhe

Os tão compridos transes, as angústias,

Que o frio coração lhe atormentaram

De guerreiro e de pai: - vale, e de sobra.

Ele que em tanta dor se contivera,

Tomado pelo súbito contraste,

Desfaz-se agora em pranto copioso,

Que o exaurido coração remoça.





A taba se alborota, os golpes descem,

Gritos, imprecações profundas soam,

Emaranhada a multidão braveja,

Revolve-se, enovela-se confusa,

E mais revolta em mor furor se acende.

E os sons dos golpes que incessantes fervem.

Vozes, gemidos, estertor de morte

Vão longe pelas ermas serranias

Da humana tempestade propagando

Quantas vagas de povo enfurecido

Contra um rochedo vivo se quebravam.





Era ele, o Tupi; nem fora justo

Que a fama dos Tupis - o nome, a glória,

Aturado labor de tantos anos,

Derradeiro brasão da raça extinta,

De um jacto e por um só se aniquilasse.





— Basta! clama o chefe dos Timbiras,

— Basta, guerreiro ilustre! assaz lutaste,

E para o sacrifício é mister forças. -

O guerreiro parou, caiu nos braços

Do velho pai, que o cinge contra o peito,

Com lágrimas de júbilo bradando:

“Este, sim, que é meu filho muito amado!





“E pois que o acho enfim, qual sempre o tive,

“Corram livres as lágrimas que choro,

“Estas lágrimas, sim, que não desonram.”







X
Um velho Timbira, coberto de glória,

guardou a memória

Do moço guerreiro, do velho Tupi!





E à noite, nas tabas, se alguém duvidava

do que ele contava,

Dizia prudente: - “Meninos, eu vi!

“Eu vi o brioso no largo terreiro

cantar prisioneiro

Seu canto de morte, que nunca esqueci:

Valente, como era, chorou sem ter pejo;

parece que o vejo,

Que o tenho nest'hora diante de mim.





“Eu disse comigo: Que infâmia d’escravo!

Pois não, era um bravo;

Valente e brioso, como ele, não vi!

E à fé que vos digo: parece-me encanto

Que quem chorou tanto,

Tivesse a coragem que tinha o Tupi!"





Assim o Timbira, coberto de glória,

guardava a memória

Do moço guerreiro, do velho Tupi.

E à noite nas tabas, se alguém duvidava

do que ele contava,

Tomava prudente: "Meninos, eu vi!”


A concha e a virgem
Linda concha que passava,

Boiando por sobre o mar,

Junto a uma rocha, onde estava

Triste donzela a pensar,

Perguntou-lhe: — "Virgem bela,

Que fazes no teu cismar?"

— "E tu", pergunta a donzela,

"Que fazes no teu vagar?"


Responde a concha: — "Formada

Por estas águas do mar,

Sou pelas águas levada,

Nem sei onde vou parar!"

Responde a virgem sentida,

Que estava triste a pensar:

— "Eu também vago na vida,

Como tu vagas no mar!

"Vais duma a outra das vagas,

Eu dum a outro cismar;

Tu indolente divagas,

Eu sofro triste a cantar.

"Vais onde te leva a sorte,

Eu, onde me leva Deus:

Buscas a vida, — eu a morte;

Buscas a terra, — eu os céus!


Ainda uma vez — Adeus
I
Enfim te vejo! — enfim posso,

Curvado a teus pés, dizer-te,

Que não cessei de querer-te,

Pesar de quanto sofri.

Muito penei! Cruas ânsias,

Dos teus olhos afastado,

Houveram-me acabrunhado

A não lembrar-me de ti!

II
Dum mundo a outro impelido,

Derramei os meus lamentos

Nas surdas asas dos ventos,

Do mar na crespa cerviz!

Baldão, ludíbrio da sorte

Em terra estranha, entre gente,

Que alheios males não sente,

Nem se condói do infeliz!

III

Louco, aflito, a saciar-me

D'agravar minha ferida,

Tomou-me tédio da vida,

Passos da morte senti;

Mas quase no passo extremo,

No último arcar da esp'rança,

Tu me vieste à lembrança:

Quis viver mais e vivi!


IV

Vivi; pois Deus me guardava

Para este lugar e hora!

Depois de tanto, senhora,

Ver-te e falar-te outra vez;

Rever-me em teu rosto amigo,

Pensar em quanto hei perdido,

E este pranto dolorido

Deixar correr a teus pés.

V
Mas que tens? Não me conheces?

De mim afastas teu rosto?

Pois tanto pôde o desgosto

Transformar o rosto meu?

Sei a aflição quanto pode,

Sei quanto ela desfigura,

E eu não vivi na ventura...

Olha-me bem, que sou eu!
VI

Nenhuma voz me diriges!...

Julgas-te acaso ofendida?

Deste-me amor, e a vida

Que me darias — bem sei;

Mas lembrem-te aqueles feros

Corações, que se meteram

Entre nós; e se venceram,

Mal sabes quanto lutei!

VII
Oh! se lutei! . . . mas devera

Expor-te em pública praça,

Como um alvo à populaça,

Um alvo aos dictérios seus!

Devera, podia acaso

Tal sacrifício aceitar-te

Para no cabo pagar-te,

Meus dias unindo aos teus?

VIII
Devera, sim; mas pensava,

Que de mim t'esquecerias,

Que, sem mim, alegres dias

T'esperavam; e em favor

De minhas preces, contava

Que o bom Deus me aceitaria

O meu quinhão de alegria

Pelo teu, quinhão de dor!
IX

Que me enganei, ora o vejo;

Nadam-te os olhos em pranto,

Arfa-te o peito, e no entanto

Nem me podes encarar;

Erro foi, mas não foi crime,

Não te esqueci, eu to juro:

Sacrifiquei meu futuro,

Vida e glória por te amar!

X
Tudo, tudo; e na miséria

Dum martírio prolongado,

Lento, cruel, disfarçado,

Que eu nem a ti confiei;

"Ela é feliz (me dizia)

"Seu descanso é obra minha."

Negou-me a sorte mesquinha. . .

Perdoa, que me enganei!

XI
Tantos encantos me tinham,

Tanta ilusão me afagava

De noite, quando acordava,

De dia em sonhos talvez!

Tudo isso agora onde pára?

Onde a ilusão dos meus sonhos?

Tantos projetos risonhos,

Tudo esse engano desfez!

XII

Enganei-me!... — Horrendo caos

Nessas palavras se encerra,

Quando do engano, quem erra.

Não pode voltar atrás!

Amarga irrisão! reflete:

Quando eu gozar-te pudera,

Mártir quis ser, cuidei qu'era...

E um louco fui, nada mais!


XIII

Louco, julguei adornar-me

Com palmas d'alta virtude!

Que tinha eu bronco e rude

Co que se chama ideal?

O meu eras tu, não outro;

Stava em deixar minha vida

Correr por ti conduzida,

Pura, na ausência do mal.

XIV

Pensar eu que o teu destino

Ligado ao meu, outro fora,

Pensar que te vejo agora,

Por culpa minha, infeliz;

Pensar que a tua ventura

Deus ab eterno a fizera,

No meu caminho a pusera...

E eu! eu fui que a não quis!

XV

És doutro agora, e pr'a sempre!

Eu a mísero desterro

Volto, chorando o meu erro,

Quase descrendo dos céus!

Dói-te de mim, pois me encontras

Em tanta miséria posto,

Que a expressão deste desgosto

Será um crime ante Deus!

XVI
Dói-te de mim, que t'imploro

Perdão, a teus pés curvado;

Perdão!... de não ter ousado

Viver contente e feliz!

Perdão da minha miséria,

Da dor que me rala o peito,

E se do mal que te hei feito,

Também do mal que me fiz!

XVII

Adeus qu'eu parto, senhora;

Negou-me o fado inimigo

Passar a vida contigo,

Ter sepultura entre os meus;

Negou-me nesta hora extrema,

Por extrema despedida,

Ouvir-te a voz comovida

Soluçar um breve Adeus!

XVIII
Lerás porém algum dia

Meus versos d'alma arrancados,

D'amargo pranto banhados,

Com sangue escritos; — e então

Confio que te comovas,

Que a minha dor te apiade

Que chores, não de saudade,

Nem de amor, — de compaixão,

 
Se se morre de amor!


Meere und Berge und Horizonte zwischen

den Liebenden - aber die Seelen versetzen

sích aus dem staubigen Kerker und treffen

sich im Paradiese der Liebe.

Schiller, Die Rüuber

Se se morre de amor! — Não, não se morre,

Quando é fascinação que nos surpreende

De ruidoso sarau entre os festejos;

Quando luzes, calor, orquestra e flores

Assomos de prazer nos raiam n'alma,

Que embelezada e solta em tal ambiente

No que ouve, e no que vê prazer alcança!


Simpáticas feições, cintura breve,

Graciosa postura, porte airoso,

Uma fita, uma flor entre os cabelos,

Um quê mal definido, acaso podem

Num engano d'amor arrebatar-nos.

Mas isso amor não é; isso é delírio,

Devaneio, ilusão, que se esvaece

Ao som final da orquestra, ao derradeiro

Clarão, que as luzes no morrer despedem:

Se outro nome lhe dão, se amor o chamam,

D'amor igual ninguém sucumbe à perda.

Amor é vida; é ter constantemente

Alma, sentidos, coração — abertos

Ao grande, ao belo; é ser capaz d'extremos,

D'altas virtudes, té capaz de crimes!

Compr'ender o infinito, a imensidade,

E a natureza e Deus; gostar dos campos,

D'aves, flores, murmúrios solitários;

Buscar tristeza, a soledade, o ermo,

E ter o coração em riso e festa;

E à branda festa, ao riso da nossa alma

Fontes de pranto intercalar sem custo;

Conhecer o prazer e a desventura

No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto

O ditoso, o misérrimo dos entes;

Isso é amor, e desse amor se morre!


Amar, e não saber, não ter coragem

Para dizer que amor que em nós sentimos;

Temer qu'olhos profanos nos devassem

O templo, onde a melhor porção da vida

Se concentra; onde avaros recatamos

Essa fonte de amor, esses tesouros

Inesgotáveis, d'ilusões floridas;

Sentir, sem que se veja, a quem se adora,

Compr'ender, sem lhe ouvir, seus pensamentos,

Segui-la, sem poder fitar seus olhos,

Amá-la, sem ousar dizer que amamos,

E, temendo roçar os seus vestidos,

Arder por afogá-la em mil abraços:

Isso é amor, e desse amor se morre!

Se tal paixão porém enfim transborda,

Se tem na terra o galardão devido

Em recíproco afeto; e unidas, uma,

Dois seres, duas vidas se procuram,

Entendem-se, confundem-se e penetram

Juntas — em puro céu d'êxtases puros:

Se logo a mão do fado as torna estranhas,

Se os duplica e separa, quando unidos

A mesma vida circulava em ambos;

Que será do que fica, e do que longe

Serve às borrascas de ludíbrio e escárnio?

Pode o raio num píncaro caindo,

Torná-lo dois, e o mar correr entre ambos;

Pode rachar o tronco levantado

E dois cimos depois verem-se erguidos,

Sinais mostrando da aliança antiga;

Dois corações porém, que juntos batem,

Que juntos vivem, — se os separam, morrem;

Ou se entre o próprio estrago inda vegetam,

Se aparência de vida, em mal, conservam,

Ânsias cruas resumem do proscrito,

Que busca achar no berço a sepultura!

Esse, que sobrevive à própria ruína,

Ao seu viver do coração, — às gratas

Ilusões, quando em leito solitário,

Entre as sombras da noite, em larga insônia,

Devaneando, a futurar venturas,

Mostra-se e brinca a apetecida imagem;

Esse, que à dor tamanha não sucumbe,

Inveja a quem na sepultura encontra

Dos males seus o desejado termo!


Leito de folhas verdes


Por que tardas, Jatir, que tanto a custo

À voz do meu amor moves teus passos?

Da noite a viração, movendo as folhas,

Já nos cimos do bosque rumoreja.


Eu sob a copa da mangueira altiva

Nosso leito gentil cobri zelosa

Com mimoso tapiz de folhas brandas,

Onde o frouxo luar brinca entre flores.


Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,

Já solta o bogari mais doce aroma!

Como prece de amor, como estas preces,

No silêncio da noite o bosque exala.


Brilha a lua no céu, brilham estrelas,

Correm perfumes no correr da brisa,

A cujo influxo mágico respira-se

Um quebranto de amor, melhor que a vida!


A flor que desabrocha ao romper d'alva

Um só giro do sol, não mais, vegeta:

Eu sou aquela flor que espero ainda

Doce raio do sol que me dê vida.


Sejam vales ou montes, lago ou terra,

Onde quer que tu vás, ou dia ou noite,

Vai seguindo após ti meu pensamento;

Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!


Meus olhos outros olhos nunca viram,

Não sentiram meus lábios outros lábios,

Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas

A arazóia na cinta me apertaram.


Do tamarindo a flor jaz entreaberta,

Já solta o bogari mais doce aroma

Também meu coração, como estas flores,

Melhor perfume ao pé da noite exala!


Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes

À voz do meu amor, que em vão te chama!

Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil

A brisa da manhã sacuda as folhas!

Seus olhos
Oh! rouvre tes grands yeux dont la paupière tremble,

Tes yeux pleins de langueur;

Leur regard est si beau quand nous sommes ememble!

Rouvre-les; ce regard manque à ma vie, il semble

Que tufermes ton coeur.

Turquety

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,

Estrelas incertas, que as águas dormentes

Do mar vão ferir;

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,

Têm meiga expressão,

Mais doce que a brisa, — mais doce que o nauta

De noite cantando, — mais doce que a frauta

Quebrando a solidão,

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,

De vivo luzir,

São meigos infantes, gentis, engraçados

Brincando a sorrir.

São meigos infantes, brincando, saltando

Em jogo infantil,

Inquietos, travessos; — causando tormento,

Com beijos nos pagam a dor de um momento,

Com modo gentil.


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,

Assim é que são;

Às vezes luzindo, serenos, tranqüilos,

Às vezes vulcão!

Às vezes, oh! sim, derramam tão fraco,

Tão frouxo brilhar,

Que a mim me parece que o ar lhes falece,

E os olhos tão meigos, que o pranto umedece

Me fazem chorar.


Assim lindo infante, que dorme tranqüilo,

Desperta a chorar;

E mudo e sisudo, cismando mil coisas,

Não pensa — a pensar.

Nas almas tão puras da virgem, do infante,

Às vezes do céu

Cai doce harmonia duma Harpa celeste,

Um vago desejo; e a mente se veste

De pranto co'um véu.


Quer sejam saudades, quer sejam desejos

Da pátria melhor;

Eu amo seus olhos que choram em causa

Um pranto sem dor.


Eu amo seus olhos tão negros, tão puros,

De vivo fulgor;

Seus olhos que exprimem tão doce harmonia,

Que falam de amores com tanta poesia,

Com tanto pudor.

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,

Assim é que são;

Eu amo esses olhos que falam de amores

Com tanta paixão.

O amor

Amare amabam.

S. Agostinho

Amor! enlevo d'alma, arroubo, encanto

Desta existência mísera, onde existes?

Fino sentir ou mágico transporte,

(O quer que seja que nos leva a extremos,

Aos quais não basta a natureza humana;)

Simpática atração d'almas sinceras

Que unidas pelo amor, no amor se apuram,

Por quem suspiro, serás nome apenas?


A inútil chama ressecou meus lábios,

Mirrou-me o coração da vida em meio,

E à terra fez baixar a mente errada

Que entre nuvens, amor, por ti bradava!

Não te pude encontrar! — em vão meus anos

No louco intento esperdicei; gelados,

Uns após outros a cair precípites

Na urna do passado os vi; eu triste,

Amor, por ti clamava; — e o meu deserto

Aos meus acentos reboava embalde.


Em vão meu coração por ti se fina,

Em vão minha alma te compreende e busca,

Em vão meus lábios sôfregos cobiçam

Libar a taça que aos mortais of’reces!

Dizem-na funda, inesgotável, meiga;

Enquanto a vejo rasa, amarga e dura!

Dizem-na bálsamo, eu veneno a sorvo:

Prazer, doçura, — eu dor e fel encontro!

Dobrei-me às duras leis que me impuseste,

Curvei ao jugo teu meu colo humilde,

Feri-me aos teus ardentes passadores,

Prendi-me aos teus grilhões, rojei por terra...

E o lucro?... foram lágrimas perdidas,

Foi roxa cicatriz qu'inda conservo,

Desbotada a ilusão e a vida exausta!

Celeste emanação, gratos eflúvios

Das roseiras do céu; bater macio

Das asas auribrancas dalgum anjo,

Que roça em noite amiga a nossa esfera,

Centelha e luz do sol que nunca morre;

És tudo, e mais qu'isto: — és luz e vida,

Perfume, e vôo d'anjo mal sentido,

Peregrinas essências trescalando!...

Também passas veloz, — breve te apagas,

Como duma ave a sombra fugitiva,

Desgarrada voando à flor de um lago!

Rola
Dês que amor me deu que eu lesse

Nos teus olhos minha sina,

Ando, como a peregrina

Rola, que o esposo perdeu!
Seja noite ou seja dia,

Eu te procuro constante:

Vem, oh! vem, ó meu amante,

Tua sou e tu és meu!
Vem, oh! vem, que por ti clamo;

Vem contentar meus desejos,

Vem fartar-me com teus beijos,

Vem saciar-me de amor!

Amo-te, quero-te, adoro-te,

Abraso-me quando em ti penso,

E em fogo voraz, intenso,

Anseio louca de amor!

Vem, que te chamo e te aguardo,

Vem apertar-me em teus braços,

Estreitar-me em doces laços,

Vem pousar no peito meu!

Que, se amor me deu que eu lesse

Nos teus olhos minha sina,

Ando, como a peregrina

Rola, que o esposo perdeu.


Olhos verdes


Eles verdes são:

E têm por usança,

na cor esperança,

E nas obras não.

Cam. Rim.

São uns olhos verdes, verdes,

Uns olhos de verde-mar,

Quando o tempo vai bonança;

Uns olhos cor de esperança,

Uns olhos por que morri;

Que ai de mim!

Nem já sei qual fiquei sendo

Depois que os vi!

Como duas esmeraldas,

Iguais na forma e na cor,

Têm luz mais branda e mais forte,

Diz uma — vida, outra — morte;

Uma — loucura, outra — amor.

Mas ai de mim!

Nem já sei qual fiquei sendo

Depois que os vi!

São verdes da cor do prado,

Exprimem qualquer paixão,

Tão facilmente se inflamam,

Tão meigamente derramam

Fogo e luz do coração

Mas ai de mim!

Nem já sei qual fiquei sendo

depois que os vi!

São uns olhos verdes, verdes,

Que podem também brilhar;

Não são de um verde embaçado,

Mas verdes da cor do prado,

Mas verdes da cor do mar.

Mas ai de mim!

Nem já sei qual fiquei sendo

Depois que os vi!


Como se lê num espelho,

Pude ler nos olhos seus!

Os olhos mostram a alma,

Que as ondas postas em calma

Também refletem os céus;

Mas ai de mim!

Nem já sei qual fiquei sendo

Depois que os vi!

Dizei vós, ó meus amigos,

Se vos perguntam por mim,

Que eu vivo só da lembrança

De uns olhos cor de esperança,

De uns olhos verdes que vi!

Que ai de mim!

Nem já sei qual fiquei sendo

Depois que os vi!

Dizei vós: Triste do bardo!

Deixou-se de amor finar!

Viu uns olhos verdes, verdes,

uns olhos da cor do mar:

Eram verdes sem esp’rança,

Davam amor sem amar!

Dizei-o vós, meus amigos,

Que ai de mim!

Não pertenço mais à vida

Depois que os vi!


Como eu te amo
Como se ama o silêncio, a luz, o aroma,

O orvalho numa flor, nos céus a estrela,

No largo mar a sombra de uma vela,

Que lá na extrema do horizonte assoma;


Como se ama o clarão da branca lua,

Da noite na mudez os sons da flauta,

As canções saudosíssimas do nauta,

Quando em mole vaivém a nau flutua,


Como se ama das aves o gemido,

Da noite as sombras e do dia as cores,

Um céu com luzes, um jardim com flores,

Um canto quase em lágrimas sumido;

Como se ama o crepúsculo da aurora,

A mansa viração que o bosque ondeia,

O sussurro da fonte que serpeia,

Uma imagem risonha e sedutora;


Como se ama o calor e a luz querida,

A harmonia, o frescor, os sons, os céus,

Silêncio, e cores, e perfume, e vida,

Os pais e a pátria e a virtude e a Deus:


Assim eu te amo, assim; mais do que podem

Dizer-to os lábios meus, — mais do que vale

Cantar a voz do trovador cansada:

O que é belo, o que é justo, santo e grande

Amo em ti. — Por tudo quanto sofro,

Por quanto já sofri, por quanto ainda

Me resta de sofrer, por tudo eu te amo.

O que espero, cobiço, almejo, ou temo

De ti, só de ti pende: oh! nunca saibas

Com quanto amor eu te amo, e de que fonte

Tão terna, quanto amarga o vou nutrindo!

Esta oculta paixão, que mal suspeitas,

Que não vês, não supões, nem te eu revelo,

Só pode no silêncio achar consolo,

Na dor aumento, intérprete nas lágrimas.



De mim não saberás como te adoro;

Não te direi jamais,

Se te amo, e como, e a quanto extremo chega

Esta paixão voraz!

Se andas, sou o eco dos teus passos;

Da tua voz, se falas;

o murmúrio saudoso que responde

Ao suspiro que exalas.


No odor dos teus perfumes te procuro,

Tuas pegadas sigo;

Velo teus dias, te acompanho sempre,

E não me vês contigo!


Oculto e ignorado me desvelo

Por ti, que me não vês;

Aliso o teu caminho, esparjo flores,

Onde pisam teus pés.

Mesmo lendo estes versos, que m'inspiras,

— "Não pensa em mim", dirás:

Imagina-o, se o podes, que os meus lábios

Não to dirão jamais!


Sim, eu te amo; porém nunca

Saberás do meu amor;

A minha canção singela

Traiçoeira não revela

O prêmio santo que anela

O sofrer do trovador!


Sim, eu te amo; porém nunca

Dos lábios meus saberás,

Que é fundo como a desgraça,

Que o pranto não adelgaça,

Leve, qual sombra que passa,

Ou como um sonho fugaz!


Aos meus lábios, aos meus olhos

Do silêncio imponho a lei;

Mas lá onde a dor se esquece,

Onde a luz nunca falece,

Onde o prazer sempre cresce,

Lá saberás se te amei!


E então dirás: "Objeto

Fui de santo e puro amor:

A sua canção singela;

Tudo agora me revela;

Já sei o prêmio que anela

O sofrer do trovador.

"Amou-me como se ama a luz querida,

Como se ama o silêncio, os sons, os céus,

Qual se amam cores e perfume e vida,

Os pais e a pátria, e a virtude e a Deus!"

Soneto

Pensas tu, bela Anarda, que os poetas

Vivem d'ar, de perfumes, d'ambrosia?

Que vagando por mares d'harmonia

São melhores que as próprias borboletas?



Não creias que eles sejam tão patetas.

Isso é bom, muito bom mas em poesia,

São contos com que a velha o sono cria

No menino que engorda a comer petas!


Talvez mesmo que algum desses brejeiros

Te diga que assim é, que os dessa gente

Não são lá dos heróis mais verdadeiros.


Eu que sou pecador, — que indiferente

Não me julgo ao que toca aos meus parceiros,

Julgo um beijo sem fim cousa excelente.

Rio de Janeiro - 1848.



Se te amo, não sei!
Amar! se te amo, não sei.

Oiço aí pronunciar

Essa palavra de modo

Que não sei o que é amar.

Se amar é sonhar contigo,

Se é pensar, velando, em ti,

Se é ter-te n'alma presente

Todo esquecido de mim!


Se é cobiçar-te, querer-te

Como uma bênção dos céus

A ti somente na terra

Como lá em cima a Deus;


Se é dar a vida, o futuro,

Para dizer que te amei:

Amo; porém se te amo

Como oiço dizer, — não sei.


Sei que se um gênio bom me aparecesse

E tronos, glórias, ilusões floridas,

E os tesouros da terra me oferecesse

E as riquezas que o mar tem escondidas;


E do outro lado — a ti somente, — e o gozo

Efêmero e precário — e após a morte;

E me dissesse: "Escolhe" — oh! jubiloso,

Exclamara, senhor da minha sorte! —



"Que tesouro na terra há i que a iguale?

Quero-a mil vezes, de joelhos — sim!

Bendita a vida que tal preço vale,

E que merece de acabar assim!"

Seja noite ou seja dia,

Eu te procuro constante:

Vem, oh! vem, ó meu amante,

Tua sou e tu és meu!


Vem, oh! vem, que por ti clamo;

Vem contentar meus desejos,

Vem fartar-me com teus beijos,

Vem saciar-me de amor!

Amo-te, quero-te, adoro-te,

Abraso-me quando em ti penso,

E em fogo voraz, intenso,

Anseio louca de amor!
Vem, que te chamo e te aguardo,

Vem apertar-me em teus braços,

Estreitar-me em doces laços,

Vem pousar no peito meu!

Que, se amor me deu que eu lesse

Nos teus olhos minha sina,

Ando, como a peregrina

Rola, que o esposo perdeu.
Álvares de Azevedo


A lagartixa
A lagartixa ao sol ardente vive

E fazendo verão o corpo espicha:

O clarão de teus olhos me dá vida,

Tu és o sol e eu sou a lagartixa.


Amo-te como o vinho e como o sono,

Tu és meu copo e amoroso leito...

Mas teu néctar de amor jamais se esgota,

Travesseiro não há como teu peito.


Posso agora viver: para coroas

Não preciso no prado colher flores;

Engrinaldo melhor a minha fronte

Nas rosas mais gentis de teus amores


Vale todo um harém a minha bela,

Em fazer-me ditoso ela capricha...

Vivo ao sol de seus olhos namorados,

Como ao sol de verão a lagartixa.




Adeus, meus sonhos!
Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!

Não levo da existência uma saudade!

E tanta vida que meu peito enchia

Morreu na minha triste mocidade!

Misérrimo! Votei meus pobres dias

À sina doida de um amor sem fruto,

E minh'alma na treva agora dorme

Como um olhar que a morte envolve em luto.

Que me resta, meu Deus?

Morra comigo

A estrela de meus cândidos amores,

Já não vejo no meu peito morto

Um punhado sequer de murchas flores!




Amor
Quand la mort est si belle, Il est doux de mourir. V. Hugo
Amemos! Quero de amor

Viver no teu coração!

Sofrer e amar essa dor

Que desmaia de paixão!

Na tu'alma, em teus encantos

E na tua palidez

E nos teus ardentes prantos

Suspirar de languidez!

Quero em teus lábio beber

Os teus amores do céu,

Quero em teu seio morrer

No enlevo do seio teu!

Quero viver d'esperança,

Quero tremer e sentir!

Na tua cheirosa trança

Quero sonhar e dormir!

Vem, anjo, minha donzela,

Minha'alma, meu coração!

Que noite, que noite bela!

Como é doce a viração!

E entre os suspiros do vento

Da noite ao mole frescor,

Quero viver um momento,

Morrer contigo de amor!



Anjos do mar
As ondas são anjos que dormem no mar,

Que tremem, palpitam, banhados de luz...

São anjos que dormem, a rir e sonhar

E em leito d'escuma revolvem-se nus!

E quando de noite vem pálida a lua

Seus raios incertos tremer, pratear,

E a trança luzente da nuvem flutua,

As ondas são anjos que dormem no mar!

Que dormem, que sonham — e o vento dos céus

Vem tépido à noite nos seios beijar!

São meigos anjinhos, são filhos de Deus,

Que ao fresco se embalam do seio do mar!


E quando nas águas os ventos suspiram,

São puros fervores de ventos e mar:

São beijos que queimam... e as noites deliram,

E os pobres anjinhos estão a chorar!


Ai! quando tu sentes dos mares na flor

Os ventos e vagas gemer, palpitar,

Porque não consentes, num beijo de amor,

Que eu diga-te os sonhos dos anjos do mar!



Desalento
Por que havíeis passar tão doces dias?

A. F. DE SERPA PIMENTEL

Feliz daquele que no livro d'alma

Não tem folhas escritas

E nem saudade amarga, arrependida,

Nem lágrimas malditas!

Feliz daquele que de um anjo as tranças

Não respirou sequer

E nem bebeu eflúvios descorando

Numa voz de mulher...

E não sentiu-lhe a mão cheirosa e branca

Perdida em seus cabelos,

Nem resvalou do sonho deleitoso

A reais pesadelos...

Quem nunca te beijou, flor dos amores,

Flor do meu coração,

E não pediu frescor, febril e insano

Da noite à viração!


Ah! feliz quem dormiu no colo ardente

Da huri dos amores,

Que sôfrego bebeu o orvalho santo

Das perfumadas flores...


E pôde vê-la morta ou esquecida

Dos longos beijos seus,

Sem blasfemar das ilusões mais puras

E sem rir-se de Deus!


Mas, nesse doloroso sofrimento

Do pobre peito meu,

Sentir no coração que à dor da vida

A esperança morreu!...

Que me resta, meu Deus? aos meus suspiros

Nem geme a viração...

E dentro, no deserto do meu peito,

Não dorme o coração!



É ela! É ela! É ela! É ela!
É ela! É ela! - murmurei tremendo,
E o eco ao longe murmurou - é ela!

Eu a vi... minha fada aérea e pura -

A minha lavadeira na janela!

Dessas águas-furtadas onde eu moro

Eu a vejo estendendo no telhado

Os vestidos de chita, as saias brancas;

Eu a vejo e suspiro enamorado!

Esta noite eu ousei mais atrevido

Nas telhas que estalavam nos meus passos

Ir espiar seu venturoso sono,

Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!

Como dormia! Que profundo sono!...

Tinha na mão o ferro do engomado...

Como roncava maviosa e pura!...

Quase caí na rua desmaiado!

Afastei a janela, entrei medroso...

Palpitava-lhe o seio adormecido...

Fui beijá-la... roubei do seio dela

Um bilhete que estava ali metido...

Oh! de certo... (pensei) é doce página

Onde a alma derramou gentis amores;

São versos dela... que amanhã de certo

Ela me enviará cheios de flores...

Tremi de febre!

Venturosa folha!

Quem pousasse contigo neste seio!

Como Otelo beijando a sua esposa,

Eu beijei-a a tremer de devaneio...

É ela! É ela! - repeti tremendo;

Mas cantou nesse instante uma coruja...

Abri cioso a página secreta...

Oh! Meu Deus! Era um rol de roupa suja!

Mas se Werther morreu por ver Carlota

Dando pão com manteiga às criancinhas

Se achou-a assim mais bela - eu mais te adoro

Sonhando-te a lavar as camizinhas!

É ela! É ela! meu amor, minh'alma,

A Laura, a Beatriz que o céu revela...

É ela! É ela! - murmurei tremendo,

E o eco ao longe suspirou - é ela!



Castro Alves

Vozes d'África

Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?

Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes

Embuçado nos céus?

Há dois mil anos te mandei meu grito,

Que embalde desde então corre o infinito...

Onde estás, Senhor Deus?...



Qual Prometeu tu me amarraste um dia

Do deserto na rubra penedia

— Infinito: galé! ...

Por abutre — me deste o sol candente,

E a terra de Suez — foi a corrente

Que me ligaste ao pé...



O cavalo estafado do Beduíno

Sob a vergasta tomba ressupino

E morre no areal.

Minha garupa sangra, a dor poreja,

Quando o chicote do simoun dardeja

O teu braço eternal.



Minhas irmãs são belas, são ditosas...

Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas

Dos haréns do Sultão.

Ou no dorso dos brancos elefantes

Embala-se coberta de brilhantes

Nas plagas do Hindustão.



Por tenda tem os cimos do Himalaia...

Ganges amoroso beija a praia

Coberta de corais ...

A brisa de Misora o céu inflama;

E ela dorme nos templos do Deus Brama,

— Pagodes colossais...



A Europa é sempre Europa, a gloriosa! ...

A mulher deslumbrante e caprichosa,

Rainha e cortesã.

Artista — corta o mármor de Carrara;

Poetisa — tange os hinos de Ferrara,

No glorioso afã! ...



Sempre a láurea lhe cabe no litígio...

Ora uma c'roa, ora o barrete frígio

Enflora-lhe a cerviz.

Universo após ela — doudo amante

Segue cativo o passo delirante

Da grande meretriz.



....................................



Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada

Em meio das areias esgarrada,

Perdida marcho em vão!

Se choro... bebe o pranto a areia ardente;

talvez... p'ra que meu pranto, ó Deus clemente!

Não descubras no chão...



E nem tenho uma sombra de floresta...

Para cobrir-me nem um templo resta

No solo abrasador...

Quando subo às Pirâmides do Egito

Embalde aos quatro céus chorando grito:

"Abriga-me, Senhor!..."



Como o profeta em cinza a fronte envolve,

Velo a cabeça no areal que volve

O siroco feroz...

Quando eu passo no Saara amortalhada...

Ai! dizem: "Lá vai África embuçada

No seu branco albornoz. . . "



Nem vêem que o deserto é meu sudário,

Que o silêncio campeia solitário

Por sobre o peito meu.

Lá no solo onde o cardo apenas medra

Boceja a Esfinge colossal de pedra

Fitando o morno céu.



De Tebas nas colunas derrocadas

As cegonhas espiam debruçadas

O horizonte sem fim ...

Onde branqueia a caravana errante,

E o camelo monótono, arquejante

Que desce de Efraim



.......................................



Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!

É, pois, teu peito eterno, inexaurível

De vingança e rancor?...

E que é que fiz, Senhor? que torvo crime

Eu cometi jamais que assim me oprime

Teu gládio vingador?!



........................................



Foi depois do dilúvio... um viadante,

Negro, sombrio, pálido, arquejante,

Descia do Arará...

E eu disse ao peregrino fulminado:

"Cam! ... serás meu esposo bem-amado...

— Serei tua Eloá. . . "



Desde este dia o vento da desgraça

Por meus cabelos ululando passa

O anátema cruel.

As tribos erram do areal nas vagas,

E o nômade faminto corta as plagas

No rápido corcel.



Vi a ciência desertar do Egito...

Vi meu povo seguir — Judeu maldito —

Trilho de perdição.

Depois vi minha prole desgraçada

Pelas garras d'Europa — arrebatada —

Amestrado falcão! ...



Cristo! embalde morreste sobre um monte

Teu sangue não lavou de minha fronte

A mancha original.

Ainda hoje são, por fado adverso,

Meus filhos — alimária do universo,

Eu — pasto universal...



Hoje em meu sangue a América se nutre

Condor que transformara-se em abutre,

Ave da escravidão,

Ela juntou-se às mais... irmã traidora

Qual de José os vis irmãos outrora

Venderam seu irmão.



Basta, Senhor! De teu potente braço

Role através dos astros e do espaço

Perdão p'ra os crimes meus!

Há dois mil anos eu soluço um grito...

escuta o brado meu lá no infinito,

Meu Deus! Senhor, meu Deus!!...

São Paulo, 11 de junho de 1868

A boa vista




Sonha, poeta, sonha!

Aqui sentado

No tosco assento da janela antiga,

Apóias sobre a mão a face pálida.

Sorrindo — dos amores à cantiga.

(Álvares de Azevedo)











Era uma tarde triste, mas límpida e suave...

Eu — pálido poeta — seguia triste e grave

A estrada, que conduz ao campo solitário,

Como um filho, que volta ao paternal sacrário,





E ao longe abandonando o múrmur da cidade

— Som vago, que gagueja em meio à imensidade,—

No drama do crepúsculo eu escutava atento

A surdina da tarde ao sol, que morre lento.





A poeira da estrada meu passo levantava,

Porém minh'alma ardente no céu azul marchava

E os astros sacudia no vôo violento

— Poeira, que dormia no chão do firmamento.





A pávida andorinha, que o vendaval fustiga,

Procura os coruchéus da catedral antiga.

Eu — andorinha entregue aos vendavais do inverno,

Ia seguindo triste p'ra o velho lar paterno.





Como a águia, que do ninho talhado no rochedo

Ergue o pescoço calvo por cima do fraguedo,

— (Pra ver no céu a nuvem, que espuma o firmamento,

E o mar, — corcel que espuma ao látego do vento... )



Longe o feudal castelo levanta a antiga torre,

Que aos raios do poente brilhante sol escorre!

Ei-lo soberbo e calmo o abutre de granito

Mergulhando o pescoço no seio do infinito,





E lá de cima olhando com seus clarões vermelhos

Os tetos, que a seus pés parecem de joelhos! ...





Não! Minha velha torre! Oh! atalaia antiga,

Tu olhas esperando alguma face amiga,

E perguntas talvez ao vento, que em ti chora:

"Por que não volta mais o meu senhor d'outrora?

Por que não vem sentar-se no banco do terreiro

Ouvir das criancinhas o riso feiticeiro,

E pensando no lar, na ciência, nos pobres

Abrigar nesta sombra seus pensamentos nobres?





......................................................................





Onde estão as crianças — grupo alegre e risonho

— Que escondiam-se atrás do cipreste tristonho ...





Ou que enforcaram rindo um feio Pulchinello,

Enquanto a doce Mãe, que é toda amor, desvelo

Ralha com um rir divino o grupo folgazão,

Que vem correndo alegre beijar-lhe a branca mão?..."



......................................................................



É nisto que tu cismas, ó torre abandonada,

Vendo deserto o parque e solitária a estrada.

No entanto eu — estrangeiro, que tu já não conheces —

No limiar de joelhos só tenho pranto e preces.





Oh! deixem-me chorar!...Meu lar... meu doce ninho!

Abre a vetusta grade ao filho teu mesquinho!

Passado — mar imenso!... inunda-me em fragrância!

Eu não quero lauréis, quero as rosas da infância.





Ai! Minha triste fronte, aonde as multidões

Lançaram misturadas glórias e maldições...

Acalenta em teu seio, ó solidão sagrada!

Deixa est'alma chorar em teu ombro encostada!





Meu lar está deserto... Um velho cão de guarda

Veio saltando a custo roçar-me a testa parda,



Lamber-me após os dedos, porém a sós consigo

Rusgando com o direito, que tem um velho amigo...

Como tudo mudou-se! ... O jardim 'stá inculto

As roseiras morreram do vento ao rijo insulto...

A erva inunda a terra; o musgo trepa os muros

A urtiga silvestre enrola em nós impuros

Uma estátua caída, em cuja mão nevada

A aranha estende ao sol a teia delicada! ...

Mergulho os pés nas plantas selvagens, espalmadas,





As borboletas fogem-me em lúcidas manadas ...

E ouvindo-me as passadas tristonhas, taciturnas,

Os grilos, que cantavam, calaram-se nas furnas ...





Oh! jardim solitário! Relíquia do passado!

Minh'alma, como tu, é um parque arruinado!

Morreram-me no seio as rosas em fragrância,

Veste o pesar os muros dos meus vergéis da infância,

A estátua do talento, que pura em mim s'erguia,

Jaz hoje — e nela a turba enlaça uma ironia!...

Ao menos como tu, lá d'alma num recanto

Da casta poesia ainda escuto o canto,

— Voz do céu, que consola, se o mundo nos insulta,

E na gruta do seio murmura um tremo oculta.





Entremos! ... Quantos ecos na vasta escadaria,

Nos longos corredores respondem-me à porfia! ...





Oh! casa de meus pais! ... A um crânio já vazio,

Que o hóspede largando deixou calado e frio,

Compara-te o estrangeiro — caminhando indiscreto

Nestes salões imensos, que abriga o vasto teto.





Mas eu no teu vazio — vejo uma multidão

Fala-me o teu silêncio — ouço-te a solidão! ...

Povoam-se estas salas...





E eu vejo lentamente

No solo resvalarem falando tenuemente

Dest'alma e deste seio as sombras venerandas

Fantasmas adorados — visões sutis e brandas...

Aqui... além... mais longe... por onde eu movo o passo,

Como aves, que espantadas arrojam-se ao espaço,

Saudades e lembranças s'erguendo — bando alado —

Roçam por mim as asas voando pra o passado.

Castro Alves

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A duas flores





São duas flores unidas,

São duas rosas nascidas

Talvez no mesmo arrebol,

Vivendo no mesmo galho,

Da mesma gota de orvalho,

Do mesmo raio de sol.





Unidas, bem como as penas

Das duas asas pequenas

De um passarinho do céu...

Como um casal de rolinhas,

Como a tribo de andorinhas

Da tarde no frouxo véu.





Unidas, bem como os prantos,

Que em parelha descem tantos

Das profundezas do olhar...

Como o suspiro e o desgosto,

Como as covinhas do rosto,

Como as estrelas do mar.





Unidas... Ai quem pudera

Numa eterna primavera

Viver, qual vive esta flor.

Juntar as rosas da vida

Na rama verde e florida,

Na verde rama do amor!



Castro Alves

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A Luís



(no dia de seu natalício)

A imaginação, com o vôo ousado,

aspira a principio à eternidade...

Depois um pequeno espaço basta em breve

para os destroços de nossas esperanças iludidas! ...



Goethe







Como um perfume de longínquas plagas

Traz o vento da pátria ao peregrino,

Ó meu amigo! que saudade infinda

Tu me trazes dos tempos de menino!





É o ledo enxame de sutis abelhas

Que vem lembrar à flor o mel d'aurora...

Acres perfumes de uma idade ardente

Quando o lábio sorri... mas nunca chora!





Que tempos idos! que esperanças louras!

Que cismas de poesia e de futuro!

Nas páginas do triste Lamartine

Quanto sonho de amor pousava puro! ...





E tu falavas de um amor celeste,

De um anjo, que depois se fez esposa...

— Moça, que troca os risos de criança

Pelo meigo cismar de mãe formosa.





Oh! meu amigo! neste doce instante

o vento do passado em mim suspira,

E minh'alma estremece de alegria,

Como ao beijo da noite geme a lira.





Tu paraste na tenda, ó peregrino!

Eu vou seguindo do deserto a trilha;

Pois bem... que a lira do poeta errante

Seja a bênção do lar e da família.





Castro Alves

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A meu irmão

Guilherme de Castro Alves



Na Cordilheira altíssima dos Andes

Os Chimborazos solitários, grandes

Ardem naquelas hibernais regiões.

Ruge embalde e fumega a solfatera...

É dos lábios sangrentos da cratera

Que a avalanche vacila aos furacões.

A escória rubra com os geleiros brancos

Misturados resvalam pelo francos

Dos ombros friorentos do vulcão...



...............................................................



Assim, Poeta, é tua vida imensa,

Cerca-te o gelo, a morte, a indiferença...

E são larvas lá dentro o coração.



Castro Alves

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A volta da primavera



Aime, et tu renaítras; fais-toi fleur pour éclore,

Après avoir souffert, il faut souffrir encore;

Il faut aimer sans cesse, après avoir aimé.



A. DE MUSSET



AI! Não maldigas minha fronte pálida,

E o peito gasto ao referver de amores.

Vegetam louros — na caveira esquálida

E a sepultura se reveste em flores.





Bem sei que um dia o vendaval da sorte

Do mar lançou-me na gelada areia.

Serei... que importa? o D. Juan da morte

Dá-me o teu seio — e tu serás Haidéia!





Pousa esta mão — nos meus cabelos úmidos!...

Ensina à brisa ondulações suaves!

Dá-me um abrigo nos teus seios túmidos!

Fala!... que eu ouço o pipilar das aves!





Já viste às vezes, quando o sol de maio

Inunda o vale, o matagal e a veiga?

Murmura a relva: "Que suave raio!"

Responde o ramo: "Como a luz é meiga!"





E, ao doce influxo do clarão do dia,

O junco exausto, que cedera à enchente,

Levanta a fronte da lagoa fria...

Mergulha a fronte na lagoa ardente ...





Se a natureza apaixonada acorda

Ao quente afago do celeste amante,

Diz!... Quando em fogo o teu olhar transborda,

Não vês minh'alma reviver ovante?





É que teu riso me penetra n'alma —

Como a harmonia de uma orquestra santa —

É que teu riso tanta dor acalma...

Tanta descrença!... Tanta angústia!... Tanta!





Que eu digo ao ver tua celeste fronte,

"O céu consola toda dor que existe.

Deus fez a neve — para o negro monte!

Deus fez a virgem — para o bardo triste!"





Castro Alves

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Adormecida





Ses longs cheveux épars Ia couvrent tout entière.

La croix de son collier repose dans sa main,

Comme pour témoigner qu'elle a fait sa prière,

Et qu'elle va Ia faire en s'éveillant demain.



(A. de Musset)





Uma noite, eu me lembro... Ela dormia

Numa rede encostada molemente...

Quase aberto o roupão... solto o cabelo

E o pé descalço do tapete rente.





'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste

Exalavam as silvas da campina...

E ao longe, num pedaço do horizonte,

Via-se a noite plácida e divina.





De um jasmineiro os galhos encurvados,

Indiscretos entravam pela sala,

E de leve oscilando ao tom das auras,

Iam na face trêmulos — beijá-la.





Era um quadro celeste!... A cada afago

Mesmo em sonhos a moça estremecia...

Quando ela serenava... a flor beijava-a...

Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...





Dir-se-ia que naquele doce instante

Brincavam duas cândidas crianças...

A brisa, que agitava as folhas verdes,

Fazia-lhe ondear as negras tranças!





E o ramo ora chegava ora afastava-se...

Mas quando a via despeitada a meio,

Pra não zangá-la... sacudia alegre

Uma chuva de pétalas no seio...





Eu, fitando esta cena, repetia

Naquela noite lânguida e sentida:

"Ó flor! - tu és a virgem das campinas!

"Virgem! - tu és a flor de minha vida!..."

Castro Alves

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O laço de fita





Não sabes, criança? 'Stou louco de amores...

Prendi meus afetos, formosa Pepita.

Mas onde? No templo, no espaço, nas névoas?!

Não rias, prendi-me

Num laço de fita.





Na selva sombria de tuas madeixas,

Nos negros cabelos da moça bonita,

Fingindo a serpente qu'enlaça a folhagem,

Formoso enroscava-se

O laço de fita.





Meu ser, que voava nas luzes da festa,

Qual pássaro bravo, que os ares agita,

Eu vi de repente cativo, submisso

Rolar prisioneiro

Num laço de fita.





E agora enleada na tênue cadeia

Debalde minh'alma se embate, se irrita...

O braço, que rompe cadeias de ferro,

Não quebra teus elos,

Ó laço de fita!





Meu Deusl As falenas têm asas de opala,

Os astros se libram na plaga infinita.

Os anjos repousam nas penas brilhantes...

Mas tu... tens por asas

Um laço de fita.





Há pouco voavas na célere valsa,

Na valsa que anseia, que estua e palpita.

Por que é que tremeste? Não eram meus lábios...

Beijava-te apenas...

Teu laço de fita.





Mas ai! findo o baile, despindo os adornos

N'alcova onde a vela ciosa... crepita,

Talvez da cadeia libertes as tranças

Mas eu... fico preso

No laço de fita.





Pois bem! Quando um dia na sombra do vale

Abrirem-me a cova... formosa Pepital

Ao menos arranca meus louros da fronte,

E dá-me por c'roa...

Teu laço de fita.



O vôo do gênio





à atriz Eugênia Câmara



Um dia, em que na terra a sós vagava

Pela estrada sombria da existência,

Sem rosas — nos vergéis da adolescência,

Sem luz d'estrela — pelo céu do amor;

Senti as asas de um arcanjo errante

Roçar-me brandamente pela fronte,

Como o cisne, que adeja sobre a fonte,

As vezes toca a solitária flor.





E disse então: "Quem és, pálido arcanjo!

Tu, que o poeta vens erguer do pego?

Eras acaso tu, que Milton cego

Ouvia em sua noite erma de sol?

Quem és tu? Quem és tu?" — "Eu sou o gênio",

Disse-me o anjo "vem seguir-me o passo,

Quero contigo me arrojar no espaço,

Onde tenho por c'roas o arrebol".





"Onde me levas, pois?.. . " — "Longe te levo

Ao país do ideal, terra das flores,

Onde a brisa do céu tem mais amores

E a fantasia — lagos mais azuis. . . "

E fui... e fui... ergui-me no infinito,

Lá onde o vôo d'águia não se eleva...

Abaixo — via a terra — abismo em treva!

Acima — o firmamento — abismo em luz!





"Arcanjo! arcanjo! que ridente sonho!"

— "Não, poeta, é o vedado paraíso,

Onde os lírios mimosos do sorriso

Eu abro em todo o seio, que chorou,

Onde a loura comédia canta alegre,

Onde eu tenho o condão de um gênio infindo,

Que a sombra de Molière vem sorrindo

Beijar na fronte, que o Senhor beijou. . . "





"Onde me levas mais, anjo divino?"

— "Vem ouvir, sobre as harpas inspiradas,

O canto das esferas namoradas,

Quando eu encho de amor o azul dos céus.

Quero levar-te das paixões nos mares.

Quero levar-te a dédalos profundos,

Onde refervem sóis... e céus... e mundos...

Mais sóis... mais mundos, e onde tudo é rneu...





"Mulher! mulher! Aqui tudo é volúpia:

A brisa morna, a sombra do arvoredo,

A linfa clara, que murmura a medo,

A luz que abraça a flor e o céu ao mar.

Ó princesa, a razão já se me perde,

És a sereia da encantada Sila.

Anjo, que transformaste-te em Dalila,

Sansão de novo te quisera amar!





"Porém não paras neste vôo errante!

A que outros mundos elevar-me tentas?

Já não sinto o soprar de auras sedentas,

Nem bebo a taça de um fogoso amor.

Sinto que rolo em báratros profundos...

Já não tens asas, águia da Tessália,

Maldições sobre ti... tu és Onfália,

Ninguém te ergue das trevas e do horror.





"Porém silêncio! No maldito abismo,

Onde caí contigo criminosa,

Canta uma voz, sentida e maviosa,

Que arrependida sobe a Jeová!

Perdão! Perdão! Senhor, pra quem soluça,

Talvez seja algum anjo peregrino...

... Mas não! inda eras tu, gênio divino,

Também sabes chorar, como Eloá!





"Não mais, ó serafim! suspende as asas!

Que, através das estrelas arrastado,

Meu ser arqueja louco, deslumbrado,

Sobre as constelações e os céus azuis.

Arcanjo! Arcanjo! basta... já contigo

Mergulhei das paixões nas vagas cérulas...

Mas nos meus dedos — já não cabem — pérolas —

Mas na minh'alma — já não cabe — luz!...


Quando eu morrer

Eu morro, eu morro. A matutina brisa

Já não me arranca um riso. A rósea tarde

Já não me doura as descoradas faces

Que Gélidas se encovam.
Quando eu morrer... não lancem meu cadáver

No fosso de um sombrio cemitério...

Odeio o mausoléu que espera o morto

Como o viajante desse hotel funéreo.
Corre nas veias negras desse mármore

Não sei que sangue vil de messalina,

A cova, num bocejo indiferente,

Abre ao primeiro o boca libertina.

Ei-la a nau do sepulcro — o cemitério...

Que povo estranho no porão profundo!

Emigrantes sombrios que se embarcam

Para as pragas sem fim do outro mundo.





Tem os fogos — errantes — por santelmo.

Tem por velame — os panos do sudário...

Por mastro — o vulto esguio do cipreste,

Por gaivotas — o mocho funerário ...





Ali ninguém se firma a um braço amigo

Do inverno pelas lúgubres noitadas...

No tombadilho indiferentes chocam-se

E nas trevas esbarram-se as ossadas ...





Como deve custar ao pobre morto

Ver as plagas da vida além perdidas,

Sem ver o branco fumo de seus lares

Levantar-se por entre as avenidas! ...





Oh! perguntai aos frios esqueletos

Por que não têm o coração no peito...

E um deles vos dirá "Deixei-o há pouco

De minha amante no lascivo leito."





Outro: "Dei-o a meu pai". Outro: "Esqueci-o

Nas inocentes mãos de meu filhinho"...

... Meus amigos! Notai... bem como um pássaro

O coração do morto volta ao ninho!...

Quem dá aos pobres, empresta a Deus





Eu, que a pobreza de meus pobres cantos

Dei aos heróis — aos miseráveis grandes —,

Eu, que sou cego, — mas só peço luzes...

Que sou pequeno, — mas só fito os Andes...,

Canto nest'hora, como o bardo antigo

Das priscas eras, que bem longe vão,

O grande NADA dos heróis, que dormem

Do vasto pampa no funéreo chão ...

Duas grandezas neste instante cruzam-sel

Duas realezas hoje aqui se abraçam!

Uma — é um livro laureado em luzes

Outra — uma espada, onde os lauréis se enlaçam

Nem cora o livro de ombrear co'o sabre

Nem cora o sabre de chamá-lo irmão

Quando em loureiros se biparte o gládio

Do vasto pampa no funéreo chão.





E foram grandes teus heróis, ó pátria,

— Mulher fecunda, que não cria escravos —,

Que ao trom da guerra soluçaste aos filhos:

"Parti — soldados, mas voltai-me — bravosl"

E qual Moema desgrenhada, altiva,

Eis tua prole, que se arroja então,

De um mar de glórias apartando as vagas

Do vasto pampa no funéreo chão.





E esses Leandros do Helesponto novo

Se resvalaram —foi no chão da história

Se tropeçaram — foi na eternidade

Se naufragaram — foi no mar da glória

E hoje o que resta dos heróis gigantes?

Aqui — os filhos que vos pedem pão

Além — a ossada, que branqueia a lua,

Do vasto pampa no funéreo chão.





Ai! quantas vezes a criança loura

Seu pai procura pequenina e nua,

E vai, brincando co'o vetusto sabre,

Sentar-se à espera no portal da rua...

Mísera mãe, sobre teu peito aquece

Esta avezinha, que não tem mais pão!...

Seu pai descansa — fulminado cedro —

Do vasto pampa no funéreo chão.





Mas, já que as águias lá no sul tombaram

E os filhos d'águias o Poder esquece

É grande, é nobre, é gigantesco, é santo!...

Lançai — a esmola, e colhereis — a prece!...

Oh! dai a esmola... que do infante lindo

Por entre os dedos da pequena mão,

Ela transborda... e vai cair nas tumbas

Do vasto pampa no funéreo chão.





Há duas cousas neste mundo santas:

— O rir do infante, — o descansar do morto...

O berço — é a barca, que encalhou na vida,

A cova — é a barca do sidéreo porto...

E vós dissesses para o berço — Avante! —

Enquanto os nautas, que ao Eterno vão,

Os ossos deixam, qual na praia as âncoras,

Do vasto pampa no funéreo chão.





É santo o laço, em qu'hoje aqui s'estreitam

De heróicos troncos — os rebentos novos —!

É que são gêmeos dos heróis os filhos,

Inda que filhos de diversos povos!

Sim! me parece que nest'hora augusta

Os mortos saltam da feral mansão...

E um "bravo!" altivo de além-mar partindo

Rola do pampa no funéreo chão! ...

Pelas sombras



Ao Padre Francisco de Paula

C'est que je suis frappé du doute.

C'est que l'étoile de la foi

N'éclaire plus ma noire route.

Tout est abime autour de moi!

La Morvonnais



Senhor! A noite é brava... a praia é toda escolhos.

Ladram na escuridão das Circes as cadelas...

As lívidas marés atiram, a meus olhos,

Cadáveres, que riem à face das estrelas!
Da garça do oceano as ensopadas penas

O mórbido suor enxugam-me da testa.

Na aresta do rochedo o pé se firma apenas...

No entanto ouço do abismo a rugidora festa! ...
Nas orlas de meu manto o vendaval s'enrola. . .

Como invisível destra açoita as faces minhas...

Enquanto que eu tropeço... um grito ao longe rola...

"Quem foi?" perguntam rindo as solidões marinhas.


Senhor! Um facho ao menos empresta ao caminhante.

A treva me assoberba... O' Deus! dá-me um clarão!
————

E uma Voz respondeu nas sombras triunfante:

"Acende, ó Viajor! — o facho da Razão!"





...........................................................................

Senhor! Ao pé do lar, na quietação, na calma

Pode a flama subir brilhante, loura, eterna;

Mas quando os vendavais, rugindo, passam n'alma,

Quem pode resguardar a trêmula lanterna?

Torcida... desgrenhada aos dedos da lufada

Bateu-me contra o rosto... e se abismou na treva,

Eu vi-a vacilar... e minha mão queimada

A lâmpada sem luz embalde ao raio eleva.

Quem fez a gruta — escura, o pirilampo cria!

Quem fez a noite — azul, inventa a estrela clara!

Na fronte do oceano — acende uma ardentia!

Com o floco do Santelmo — a tempestade aclara!
Mas ai! Que a treva interna — a dúvida constante —

Deixaste assoberbar-me em funda escuridão! ...

E uma Voz respondeu nas sombras triunfante:

"Acende, ó Viajor! a Fé no coração!..."

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