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REALISMO - POEMAS DE CESÁRIO VERDE

terça-feira, 13 de abril de 2010

Cesário Verde
Lisboa
1855 - 1886
Portugal
Época:
Realismo
Poeta português, natural de Caneças, Loures, oriundo de uma família burguesa abastada. O pai era lavrador (tinha uma quinta em Linda-a-Pastora) e comerciante (estabelecido com uma loja de ferragens na baixa lisboeta). Foi por essas duas actividades práticas, úteis, de acordo com a visão do mundo do próprio Cesário Verde, que se repartiu a vida do poeta. Paralelamente, ia alimentando o seu gosto pela leitura e pela criação literária, embora longe dos meios literários oficiais com que nunca se deu bem, o que o levou, por exemplo, a abandonar o Curso Superior de Letras da Faculdade de Letras de Lisboa, que frequentou entre 1873 e 1874. Cesário Verde estreou-se, nessa altura, colaborando nos jornais Diário de Notícias, Diário da Tarde, A Tribuna e Renascença. A partir de 1875 produziu alguns dos seus melhores poemas: «Num Bairro Moderno» (1877), «Em Petiz» (1878) e «O Sentimento dum Ocidental» (1880). Este último foi escrito por ocasião do terceiro centenário da morte de Camões e é, ainda hoje, um dos textos mais conhecidos do poeta, embora mal recebido pela crítica de então, numa incompreensão geral mesmo por parte de escritores da Geração de 70, de quem Cesário Verde esperaria aceitação para a sua poesia.
A falta de estímulo da crítica e um certo mal-estar relativamente ao meio literário, expressos, por exemplo, no poema «Contrariedades» (Março de 1876), fazem com que Cesário Verde deixe de publicar em jornais, surgindo apenas, em 1884, o poema «Nós». O binómio cidade-campo surge como tema principal neste longo poema narrativo autobiográfico, onde o poeta evoca a morte de uma irmã ( 1872) e de um irmão (1882), ambos de tuberculose, doença que viria a vitimar igualmente o poeta, apesar das várias tentativas de convalescença numa quinta no Lumiar. Só em 1887 foi organizada, postumamente, por iniciativa do seu amigo Silva Pinto, uma compilação dos seus poemas, a que deu o nome de O Livro de Cesário Verde (à disposição do público em geral apenas em 1901). Dividida em duas secções, Crise Romanesca e Naturais, o livro não seguiu qualquer critério cronológico de elaboração ou de publicação. Entretanto, novas edições vieram acrescentar alguns textos à obra conhecida do poeta e organizá-la segundo critérios mais rigorosos.
Formado dentro dos moldes do realismo e do parnasianismo literários, Cesário Verde afirmou-se sobretudo pela sua oposição ao lirismo tradicional. Em poemas por vezes cínicos ou humorísticos (na linha de A Folha, de João Penha, ou de Baudelaire, de que se reconhece a influência sobretudo no tratamento da temática da cidade, do amor e da mulher) conseguiu manter-se alheio ao peso da «literatura», procurando um tom natural que valorizasse a linguagem do concreto e do coloquial, por vezes até com cariz técnico, marcando um desejo de autenticidade e um amor pelo real, que fez com que a sua poesia enfrentasse, por vezes, a acusação de prosaísmo. Com uma visão extremamente plástica do mundo, deteve-se em deambulações pela cidade ou pelo campo (seus cenários de eleição) transmitindo o que aí era oferecido aos sentidos, em cores, formas e sons, de acordo com a fórmula do próprio poeta, expressa em carta ao seu amigo Silva Pinto: «A mim o que me rodeia é o que me preocupa». Se, por um lado, exaltava os valores viris e vigorosos, saudáveis, da vida do campo e dos seus trabalhadores, sem visões bucólicas, detinha-se, por outro, na cidade, na sedução dos movimentos humanos, da sua vibração, solidarizando-se com as vítimas de injustiças sociais e integrando na sua poesia, por vezes, um desejo de evasão. Conhecido como o poeta da cidade de Lisboa, foi igualmente o poeta da Natureza anti-literária, numa antecipação de Fernando Pessoa/Alberto Caeiro, que considerava Cesário um dos vultos fundamentais da nossa história literária.
Através de processos impressionistas, de grande sugestividade (condensando e combinando, por exemplo, sensações físicas e morais num só elemento), levou a cabo uma renovação ímpar, no século XIX, da estilística poética portuguesa, abrindo caminho ao modernismo e influenciando decisivamente poetas posteriores.
Vaidosa
Dizem que tu és pura como um lírio


E mais fria e insensível que o granito,


E que eu que passo aí por favorito


Vivo louco de dor e de martírio.






Contam que tens um modo altivo e sério,


Que és muito desdenhosa e presumida,


E que o maior prazer da tua vida,


Seria acompanhar-me ao cemitério.






Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,


a déspota, a fatal, o figurino,


E afirmam que és um molde alabastrino,


E não tens coração como as estátuas.






E narram o cruel martirológio


Dos que são teus, ó corpo sem defeito,


E julgam que é monótono o teu peito


Como o bater cadente dum relógio.






Porém eu sei que tu, que como um ópio


Me matas, me desvairas e adormeces


És tão loira e doirada como as messes


E possuis muito amor... muito "amor próprio".

Lúbrica
Mandaste-me dizer,


No teu bilhete ardente,


Que hás-de por mim morrer,


Morrer muito contente.






Lançaste no papel


As mais lascivas frases;


A carta era um painel


De cenas de rapazes!






Ó cálida mulher,


Teus dedos delicados


Traçaram do prazer


Os quadros depravados!






Contudo, um teu olhar


É muito mais fogoso,


Que a febre epistolar


Do teu bilhete ansioso:






Do teu rostinho oval


Os olhos tão nefandos


Traduzem menos mal


Os vícios execrandos.






Teus olhos sensuais


Libidinosa Marta,


Teus olhos dizem mais


Que a tua própria carta.






As grandes comoções


Tu, neles, sempre espelhas;


São lúbricas paixões


As vívidas centelhas...






Teus olhos imorais,


Mulher, que me dissecas,


Teus olhos dizem mais,


Que muitas bibliotecas!
Arrojos

Se a minha amada um longo olhar me desse


Dos seus olhos que ferem como espadas,


Eu domaria o mar que se enfurece


E escalaria as nuvens rendilhadas.






Se ela deixasse, extático e suspenso


Tomar-lhe as mãos "mignonnes" (1) e aquecê-las,


Eu com um sopro enorme, um sopro imenso


Apagaria o lume das estrelas.






Se aquela que amo mais que a luz do dia,


Me aniquilasse os males taciturnos,


O brilho dos meus olhos venceria


O clarão dos relâmpagos nocturnos.






Se ela quisesse amar, no azul do espaço,


Casando as suas penas com as minhas,


Eu desfaria o Sol como desfaço


As bolas de sabão das criancinhas.






Se a Laura dos meus loucos desvarios


Fosse menos soberba e menos fria,


Eu pararia o curso aos grandes rios


E a terra sob os pés abalaria.






Se aquela por quem já não tenho risos


Me concedesse apenas dois abraços,


Eu subiria aos róseos paraísos


E a Lua afogaria nos meus braços.






Se ela ouvisse os meus cantos moribundos


E os lamentos das cítaras estranhas,


Eu ergueria os vales mais profundos


E abateria as sólidas montanhas.






E se aquela visão da fantasia


Me estreitasse ao peito alvo como arminho,


Eu nunca, nunca mais me sentaria


Às mesas espelhentas do Martinho.

Eu e ela

Cobertos de folhagem, na verdura,


O teu braço ao redor do meu pescoço,


O teu fato sem ter um só destroço,


O meu braço apertando-te a cintura;






Num mimoso jardim, ó pomba mansa,


Sobre um banco de mármore assentados.


Na sombra dos arbustos, que abraçados,


Beijarão meigamente a tua trança.






Nós havemos de estar ambos unidos,


Sem gozos sensuais, sem más ideias,


Esquecendo para sempre as nossas ceias,


E a loucura dos vinhos atrevidos.






Nós teremos então sobre os joelhos


Um livro que nos diga muitas cousas


Dos mistérios que estão para além das lousas,


Onde havemos de entrar antes de velhos.






Outras vezes buscando distracção,


Leremos bons romances galhofeiros,


Gozaremos assim dias inteiros,


Formando unicamente um coração.






Beatos ou pagãos, vida à paxá,


Nós leremos, aceita este meu voto,


O Flos-Sanctorum místico e devoto


E o laxo Cavalheiro de Flaublas...

Eu que sou feio, sólido, leal
Eu que sou feio, sólido, leal,


A ti, que és bela, frágil, assustada,


Quero estimar-te, sempre, recatada


Numa existência honesta, de cristal.






Sentado à mesa de um café devasso,


Ao avistar-te, há pouco fraca e loura,


Nesta babel tão velha e corruptora,


Tive tenções de oferecer-te o braço.






E, quando socorrestes um miserável,


Eu, que bebia cálices de absinto,


Mandei ir a garrafa, porque sinto


Que me tornas prestante, bom, sudável.






«Ela aí vem!» disse eu para os demais;


E pus me a olhar, vexado e suspirando,


O teu corpo que pulsa, alegre e brando,


Na frescura dos linhos matinais.






Via-te pela porta envidraçada;


E invejava, - talvez que não o suspeites! -


Esse vestido simples, sem enfeites,


Nessa cintura tenra, imaculada.


...


Soberbo dia! Impunha-me respeito


A limpidez do teu semblante grego;


E uma família, um ninho de sossego,


Desejava beijar o teu peito.






Com elegância e sem ostentação,


Atravessavas branca, esbelta e fina,


Uma chusma de padres de batina,


E de altos funcionários da nação.






«Mas se a atropela o povo turbulento!


Se fosse, por acaso, ali pisada!»


De repente, parastes embaraçada


Ao pé de um numeroso ajuntamento,






E eu, que urdia estes frágeis esbocetos,


Julguei ver, com a vista de poeta,


Um pombinha tímida e quieta


Num bando ameaçador de corvos pretos.






E foi, então que eu, homem varonil,


Quis dedicar-te a minha pobre vida,


A ti, que és ténue, dócil, recolhida,


Eu, que sou hábil, prático, viril.






Nas nossas ruas, ao anoitecer


Nas nossas ruas, ao anoitecer,


Há tal soturnidade, há tal melancolia,


Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia


Despertam-me um desejo absurdo de sofrer

AVE-MARIAS
Nas nossas ruas, ao anoitecer,


Há tal soturnidade, há tal melancolia,


Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia


Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.






O céu parece baixo e de neblina,


O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;


E os edifícios, com as chaminés, e a turba


Toldam-se duma cor monótona e londrina.






Batem os carros de aluguer, ao fundo,


Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!


Ocorrem-me em revista, exposições, países:


Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!






Semelham-se a gaiolas, com viveiros,


As edificações somente emadeiradas:


Como morcegos, ao cair das badaladas,


Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.






Voltam os calafates, aos magotes,


De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,


Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,


Ou erro pelos cais a que se atracam botes.






E evoco, então, as crónicas navais:


Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado


Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!


Singram soberbas naus que eu não verei jamais!






E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!


De um couraçado inglês vogam os escaleres;


E em terra num tinido de louças e talheres


Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.






Num trem de praça arengam dois dentistas;


Um trôpego arlequim braceja numas andas;


Os querubins do lar flutuam nas varandas;


Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!






Vazam-se os arsenais e as oficinas;


Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;


E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,


Correndo com firmeza, assomam as varinas.






Vêm sacudindo as ancas opulentas!


Seus troncos varonis recordam-me pilastras;


E algumas, à cabeça, embalam nas canastras


Os filhos que depois naufragam nas tormentas.






Descalças! Nas descargas de carvão,


Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;


E apinham-se num bairro aonde miam gatas,


E o peixe podre gera os focos de infecção
Cinismos

Eu hei-de lhe falar lugubremente


Do meu amor enorme e massacrado,


Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.






Hei-de expor-lhe o meu peito descarnado,


Chamar-lhe minha cruz e meu calvário,


E ser menos que um Judas empalhado.






Hei-de abrir-lhe o meu íntimo sacrário


E desvendar-lhe a vida, o mundo, o gozo,


Como um velho filósofo lendário.






Hei-de mostrar, tão triste e tenebroso,


Os pegos abismais da minha vida,


E hei-de olhá-la dum modo tão nervoso,






Que ela há-de, enfim, sentir-se constrangida,


Cheia de dor, tremente, alucinada,


E há-de chorar, chorar enternecida!






E eu hei-de, então, soltar uma risada.
Lisboa, 1871



Nas nossas ruas, ao anoitecer,


Há tal soturnidade, há tal melancolia,


Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia


Despertam-me um desejo absurdo de sofrer

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