Marques de CarvalhoJoão Marques de Carvalho (1866 — Nice, 11 de abril de 1910) foi um escritor, diplomata e jornalista paraense. É autor da obra naturalista Hortênsia, de 1888, ambientada em Belém
Em 1879, embarca para Lisboa a fim de continuar os estudos de humanidades. Dois anos depois se transfere para a França. Volta ao Pará, em 1884, iniciando a carreira de jornalista como colaborador do Diário de Belém. Rompe no ano seguinte com esse periódico pela recusa em publicarem o conto "Que bom marido!", declarado imoral. No dia seguinte A Província do Pará o publica. Mais tarde, esse trabalho aparece em Contos Paraenses, 1889, páginas: 45-53.
Em 3 de setembro é representada no Teatro Cosmopolita a comédia em um ato Entre Parentes..., na festa da atriz Aurora de Freitas.
Em 1887, é um dos fundadores e redator-chefe do diário Comércio do Pará.
Em 1888, publica sua obra máxima, Hortênsia, um romance naturalista que retrata um incesto entre dois irmãos. Foi impresso na tipografia da Livraria Moderna, em Belém. Foi reeditado, em 1989, e por último em 1997.
Em 1891, sendo ministro das Relações Exteriores (1891 a 1893) o paraense Justo Leite Chermont, inicia a carreira diplomática como cônsul brasileiro em Georgetown. No ano seguinte é transferido para Assunção como segundo-secretário de legação.
Em 1894, é transferido para Montevidéu como primeiro-secretário. Um ano depois vai para Buenos Aires como encarregado dos negócios. Em 1896, é demitido de suas funções por interferência do ministro Fernando Abbott, que o acusa dos crimes de peculato e estelionato. Volta então para Belém, reiniciando as atividades jornalísticas em A Província do Pará.
Em 1897, vai ao Rio de Janeiro para defender-se da acusação imposta ficando preso no quartel da Brigada Policial.
Em 1898, é condenado por peculato, grau médio, no Supremo Tribunal Federal. Por intermédio de seu advogado, é absolvido no ano seguinte.
Em 1900, funda a Academia Paraense de Letras, que só irá se estabelecer de fato em 1913. Achando-se doente, fixa residência em Nice, onde falece.
CONTOS PARAENSES
J. MARQUES DE CARVALHO
Desillusão
A Fontes de CarvalhoA sra. d. Joaquina era uma d'essas impagaveis solteironas, que vivem sonhando amores e descobrindo tímidas paixões nas palavras alegremente zombeteiras dos moços que fingem corteja-las por distracção.
Tinha ela a tez,—enrugada e mole como a casca do janipapo maduro,—salpicada d'essas manchas amarelas a que chamam sardas; encobria-as, em parte, com grandes e repetidas camadas de pó de arroz, comprado sempre na Loja Mariposa, da qual o co-proprietario Affonso,—o sympathico Affonso,—vendia-lh'o com muita dóse de réclames e chamadas de atenção para a superioridade da fazenda.
Usava uns vestidos fóra da moda, mal feitos, com algumas nódoas, nos quais primavam os enfeites vistosos,—uma garridice da sra. d. Joaquina.
O rosto d'ela denunciava 45 annos bem seguros entre os refêgos da engelhada epiderme,—posto que os cabellos, pretos e lustrosos como a cara suada d'um negro de Minas, mostrassem porventura uma prova de menos edade.
As pessoas que viviam mais intimamente com ella murmuravam phrases pouco lisongeiras para os seus brios de "senhora bastante apresentavel e digna do direito de aspirar a um bom casamento"—como ella pensava e dizia mui confidencialmente a certas amigas particulares.
Sempre houve maledicentes no mundo (salve a chapa!): foi por isso que uma d'essas amigas, tendo tido uma altercação com ella, retirou-se de seu trato intimo, e espalhou pelos conhecidos a noticia de que a nossa personagem pintava os cabellos, que, se não recebessem quotidianamente os respectivos affagos da esponja embebida em tintura, já deveriam estar soffrivelmente russos, quando não grisalhos. Parte dos ouvintes duvidou, suppoz equivaler aquella affirmativa a uma intriga motivada pela recente inimizade; a outra parte acreditou, naturalmente.
A sra. d. Joaquina possuia uma educação mediocre, apenas sufficiente para conhecer os seus deveres de "moça solteira", quanto á educação moral; quanto á intellectual, lia com desembaraço e alguns tropeços prosódicos as cartas repassadas de sentimentalidade de dois ou tres namorados que tivera antigamente.
Eram essas leituras um desopilativo benefico para o seu spleen de senhora entrada em annos e votada á lastimosa condição de tia. Ai! A pobre d. Joaquina lastimava-se com tristeza de não haver em sua mocidade casado com o Guedes, o ferrageiro abastado, que se apaixonara loucamente por seus encantos, quando estes, ainda que em pequenina quantidade, escudavam-se n'uns vinte e dois annos de existencia. Ella não acceitara o amor d'elle, sonhando desposar um joven barão, muito rico e elegante, como um que conhecera n'um romance do insípido Ponson du Terrail. O barão, porém, nunca appareceu. Agora era tarde para remediar o mal: o Guedes, n'um momento de lucida reflexão, resolvera viver em calmo e economico celibato, apenas conservando em casa a Belisaria, cosinheira, mulata gorda como um cevado, a qual ministrava-lhe affagos cheios de faceiros quindins, nas horas de amor, e bôas tortas de camarões seguidas de compotas de delicioso bacury, á sobremesa.
Dos outros ex-namorados a sra. d. Joaquina jámais tivera informações exactas, depois que por espontanea vontade os desenganara. Dizia-se vagamente que um fôra negociar ao rio Madeira, d'onde nunca regressou, talvez pela seducção d'alguma yára encantadora. Do outro constava apenas que partira para seu paiz natal,—Portugal,—afim de ir saborear á lareira, nos longos serões de inverno,—quando o suão sibila em as grandes chaminés ennegrecidas,—os succulentos nácos de paios da Beira,—d'aquelles paios tão glutonamente decantados pelo illustre poeta João Penha.
Por ess'arte, achava-se a sra. d. Joaquina em disponibilidade, e, a dizermos tudo, deveremos accrescentar que alimentava agora umas secretas e dulçurosas esperanças de captivar o rebelde coração do Francisco da Natividade, o elegante dono d'uma das melhores lojas da rua dos Mercadores. Este, porém, parecia não partilhar das mesmas intenções, porquanto ouvia-lhe os suspiros languorosos sem estremecer, sem pestanejar, sequer, n'uma impassibilidade de mumia. Ella armava-lhe ratoeiras amorosas: mandava-lhe flôres, fazia-lhe presentes de toalhas de labyrintho e fronhas bordadas, temperava-lhe o café quando elle ia á casa da familia d'ella, chegava-lhe phosphoros accêsos aos charutos, roçando os dedos nos d'elle, para mudamente lhe revelar a sua paixão.
Comtudo, nada o commovia, e a sra. d. Joaquina rebellava-se intimamente contra o Francisco, quando, a sós, no momento de estender-se na sua fria rede de velha virgem, passava em revista pela memoria todos os seus actos relativos ao bom andamento d'aquelle amor.
Tal era o estado do coração da boa senhora na época em que o Natividade apresentou-lhe um sobrinho seu, recentemente chegado de Portugal.
A fina amabilidade do joven lisboeta, d'uma elegancia tão natural, attraíu as boas graças da digna solteirona, que logo sympathisou com elle. Em menos d'um mez o Raul tinha em a sra. d. Joaquina uma amiga sincera, uma attenciosa admiradora do "seu caracter austero."
Elle, para retribuir-lhe as affabilidades, redobrava de cumprimentos, desfazia-se nas mais requintadas delicadezas.
Levada pelas erupções d'aquelle seu coração vulcanico, ella começou a amar ao sobrinho, com o mesmo ardor com que pouco antes amara ao tio, o Francisco da Natividade. Cedo surprehendeu o bom moço as amorosas manobras da sra. d. Joaquina, e, julgando-o necessario, inteirou o parente sobre o affecto d'ella, para obedecer aos dictames do dever. Ambos riram-se muito da nova asneira da irrisoria senhora.
Ou porque trouxesse de Lisboa os germens d'uma bronchite, ou porque, já no Pará, apanhasse alguma constipação, Raul adoeceu, ficou pállido, perseguido por uma pequena tosse, e uma tarde, após o jantar, sentiu uma suffocação, seguida de agudas dôres na parte interna do thorax, as quaes communicavam-lhe com as omoplatas. Como tivesse vontade de cuspir, curvou-se a meio sobre uma escarradeira e expelliu um pouco de sangue vivo.
—Santo Deus, que vejo?!—exclamou o tio, assustado.—Já, um medico, depressa! continuou, a correr attonito pela sala....
O facultativo chamado receitou-lhe um medicamento adequado, que estancou o sangue, e retirou-se depois de haver feito duas ou tres recommendações sobre o tratamento.
Raul melhorou: dormiu bem durante a noite. Na tarde seguinte, porém, teve uma verdadeira e forte hemoptysia. Lá foi o moleque chamar novamente o doutor.
Depois de auscultal-o, e interrogar sobre a vida passada e climas em que habitara, o medico aconselhou-o a partir para Portugal assim que podesse. Assoberbado por tão assustadora recommendação, o bondoso Francisco da Natividade tratou logo de mandar o sobrinho pelo paquete que do Pará saíu seis dias depois.
No momento em que Raul despedia-se da sra. d. Joaquina, esta, chorando verdadeiras lágrymas de dó e de saudade, tirou do bolso uma carta lacrada a vermelho e deu-a ao enfermo, dizendo-lhe:
—Tome, seu Raul. Guarde isto. Quando chegar a Lisboa, leia e faça o que lhe peço. Mas, antes não a abra, pelo amor de Deus!
—Sim, minha senhora.... Os seus pedidos são ordens para mim.... Adeus!
Chegando á cidade do Tejo, estava Raul n'um auspicioso pé de restabelecimento. Todavia, entrou a medicar-se com cuidado, resguardando-se de tudo quanto podésse fazer-lhe mal. Estes uteis entretenimentos levaram-n'o a esquecer-se da sra. d. Joaquina.
Passaram os mezes. Raul ficou curado: estava gordo e forte. Como os medicos lhe recommendassem que não viesse ao Brazil, tratou de procurar emprego no continente. Achou um, que pareceu-lhe agradavel. Fez-se caixeiro viajante d'uma conceituada casa commercial, para ir fazer cobranças pelas provincias.
Na vespera do dia em que tinha de seguir para a primeira excursão,—ao Alemtejo,—estava elle arrumando umas roupas, quando, introduzindo a mão no bolso d'um paletot que só vestia em viagem, encontraram seus dedos um objecto qualquer. Tirou-o para a claridade e viu uma carta toda amarrotada e suja. Reconheceu-a logo: era a carta que lhe déra a sra. d. Joaquina.
—Ah! que esquecimento o meu!—exclamou.—Que juizo não terá feito a meu respeito a impagavel senhora....
E, cheio de curiosidade, rasgou o sobrescripto.
"Meu bom amigo,—leu.—Devo dizer-lhe uma coisa, que ha muito afflue-me aos labios, sem todavia sentir-me com animo de fazel-o: amo-o, amo-o, com todo o ardor de que é capaz o meu ardente coração! (Isto copiou ella do romance A Caridade Christã, de Escrich,—pensou Raul). Peço-lhe que escreva-me logo, dizendo-me se fui por si acolhido o meu amor. (Aquelle fui é que era genuinamente d'ella, só d'ella; o Raul bem o conheceu). Espero ancioza a sua resposta, com a qual o meu amigo remeter-me-á meia duzia d'AGUA CIRCASSIANA, para eu dar de presente a uma conhecida minha. Disponha sempre do coração de sua eternamente,—JOAQUINA."
Raul casquinou uma sonora gargalhada terminando a leitura d'aquelle modelo d'orthographia, propriedade de termos e syntaxe; mas, logo fez-se mais serio e:
—Ora bolas!—disse.—Só os cabellos encantavam-me, por serem tão pretos e lustrosos.... E era falsa aquella côr d'azeviche!.... Que desillusão!....
Considerações sobre o Conto de DesilusãoO Conto nos coloca diante de uma personagem grotesca e vazia. O autor utiliza-se dos casos de amor fortuitos da personagem D. Joaquina para traçar um perfil exagerado da mulher aos moldes naturalista, cuja personalidade oscilava entre as transpirações românticas e a realidade dos apelos do instinto.
Ao dividir as pessoas em dois grupos – os que “naturalmente” acreditariam que D. Joaquina usava tintura e o outro que não, por tratar-se de uma fofoca ele enfatiza com o termo “naturalmente” a descrença nas pessoas.
D. Joaquina, apesar de todos os pejorativos a sua aparência, a sua condição de solteirona e ao seu intelecto tem um comportamento avançado para a época. Ela toma a iniciativa no cortejo ao Francisco da Natividade, homem superiormente bonito e elegante, e quando este não lhe corresponde ela o troca pelo sobrinho Raul, que é bem mais jovem, bonito e com finezas de homem da metrópole, um tipo declaradamente romântico. Assim numa atitude contemporânea ela conjuga a máxima atual “a fila anda”.
Ao subverter as relações entre – Guedes e Benizaria, Francisco da Natividade e D. Joaquina – D. Joaquina e Raul - ele cria falsos “tolos e/ou subalternos”, e nos expõe ao jogo de aparências que sustenta a vida dos personagens. Acreditando serem mais do que pensam. A relação entre o Guedes e sua cozinheira Belizária irá encontrar semelhança na relação dos personagens Bertoleza e João Romã do romance naturalista. O cortiço de Aluísio de Azevedo, publicado um depois de contos paraenses.
O exagero na descrição da personagem principal é corrigido pela sua astúcia amorosa. O fato dela parecer uma parva lhe serve como vantagem para manipular àqueles que a subestimam e se acham superiores.
A crítica ao romantismo perpassa todo o conto, serve mesmo para explicar o temperamento débil da personagem e para ilustrar seu jovem amante. Mas somos surpreendidos, pois o romantismo é usado apenas como “armadilha”, para consecução dos desejos amorosos de D. Joaquina.
O percurso em busca do sentido do texto nos leva a perscrutar os inúmeros recursos estilísticos e lingüísticos que o escritor manipula com maestria para significar seus intentos. Ele nos desafia a jogar. “Literatura é um jogo e na boa escritura nada é de graça.”.
O clímax do conto está no assunto da carta, que cercada de mistério e recomendações sobre sua abertura, cria expectativa, que é frustrada uma vez que Raul só a abre depois de alguns meses, evidentemente ele esquece porque estava doente e a carta estava num paletó que ele só usava quando viajava. Para sua desilusão o que ele mais gostava nela, era falso. Seus cabelos pretos e lustrosos eram assim devido a uso constante da ÁGUA CIRCASSIANA, mesmo Joaquina explicando que era para uma amiga, ele gargalha da sua inocência.
O autor nos prova que o Romantismo é tolo e foi superado pelo Realismo, o Raul é o herói romântico – bom moço, bonito, tuberculoso e idealista, D. Joaquina feia, medíocre, encalhada, mas astuta – ilude o jovem que se decepciona com ela – quando todas as evidências apontavam para a feiúra e idade suficiente para ter cabelos brancos e com a visão obtusa dos românticos não viu a realidade. Para reforça a superioridade do Realismo sobre o Romantismo – ele faz alusão à vassalagem das cantigas de amor do Trovadorismo. Observe a conversa dos dois no porto antes da partida de Raul.
A redução do ser humano ao mundo animal nos é fornecida pelas expressões “ratoeiras amorosas” e “gorda como um cevado”. Os termos parecem se referir aos personagens feios e inferiores, mas numa leitura mais atenta observamos que é ao contrário, elas são dirigidas àqueles que se pensam bonitos e espertos.
As referências ao folclore (Yara encantadora) aos costumes (uso da rede) e a culinária e frutas paraenses reforçam o caráter regionalista do conto. A linguagem e a ortografia também são registros vivos do final do século XIX. Tudo é carreado de sentido.
E para concluir a palavra impagável, dirigida a D. Joaquina, abre e fecha à narrativa, mas têm cargas semânticas diferentes – no início se refere a “uma solteirona” para depreciar e no final “impagável senhora” em respeito. Ou seja, em reverência ao realismo.
Em 1879, embarca para Lisboa a fim de continuar os estudos de humanidades. Dois anos depois se transfere para a França. Volta ao Pará, em 1884, iniciando a carreira de jornalista como colaborador do Diário de Belém. Rompe no ano seguinte com esse periódico pela recusa em publicarem o conto "Que bom marido!", declarado imoral. No dia seguinte A Província do Pará o publica. Mais tarde, esse trabalho aparece em Contos Paraenses, 1889, páginas: 45-53.
Em 3 de setembro é representada no Teatro Cosmopolita a comédia em um ato Entre Parentes..., na festa da atriz Aurora de Freitas.
Em 1887, é um dos fundadores e redator-chefe do diário Comércio do Pará.
Em 1888, publica sua obra máxima, Hortênsia, um romance naturalista que retrata um incesto entre dois irmãos. Foi impresso na tipografia da Livraria Moderna, em Belém. Foi reeditado, em 1989, e por último em 1997.
Em 1891, sendo ministro das Relações Exteriores (1891 a 1893) o paraense Justo Leite Chermont, inicia a carreira diplomática como cônsul brasileiro em Georgetown. No ano seguinte é transferido para Assunção como segundo-secretário de legação.
Em 1894, é transferido para Montevidéu como primeiro-secretário. Um ano depois vai para Buenos Aires como encarregado dos negócios. Em 1896, é demitido de suas funções por interferência do ministro Fernando Abbott, que o acusa dos crimes de peculato e estelionato. Volta então para Belém, reiniciando as atividades jornalísticas em A Província do Pará.
Em 1897, vai ao Rio de Janeiro para defender-se da acusação imposta ficando preso no quartel da Brigada Policial.
Em 1898, é condenado por peculato, grau médio, no Supremo Tribunal Federal. Por intermédio de seu advogado, é absolvido no ano seguinte.
Em 1900, funda a Academia Paraense de Letras, que só irá se estabelecer de fato em 1913. Achando-se doente, fixa residência em Nice, onde falece.
CONTOS PARAENSES
J. MARQUES DE CARVALHO
Desillusão
A Fontes de CarvalhoA sra. d. Joaquina era uma d'essas impagaveis solteironas, que vivem sonhando amores e descobrindo tímidas paixões nas palavras alegremente zombeteiras dos moços que fingem corteja-las por distracção.
Tinha ela a tez,—enrugada e mole como a casca do janipapo maduro,—salpicada d'essas manchas amarelas a que chamam sardas; encobria-as, em parte, com grandes e repetidas camadas de pó de arroz, comprado sempre na Loja Mariposa, da qual o co-proprietario Affonso,—o sympathico Affonso,—vendia-lh'o com muita dóse de réclames e chamadas de atenção para a superioridade da fazenda.
Usava uns vestidos fóra da moda, mal feitos, com algumas nódoas, nos quais primavam os enfeites vistosos,—uma garridice da sra. d. Joaquina.
O rosto d'ela denunciava 45 annos bem seguros entre os refêgos da engelhada epiderme,—posto que os cabellos, pretos e lustrosos como a cara suada d'um negro de Minas, mostrassem porventura uma prova de menos edade.
As pessoas que viviam mais intimamente com ella murmuravam phrases pouco lisongeiras para os seus brios de "senhora bastante apresentavel e digna do direito de aspirar a um bom casamento"—como ella pensava e dizia mui confidencialmente a certas amigas particulares.
Sempre houve maledicentes no mundo (salve a chapa!): foi por isso que uma d'essas amigas, tendo tido uma altercação com ella, retirou-se de seu trato intimo, e espalhou pelos conhecidos a noticia de que a nossa personagem pintava os cabellos, que, se não recebessem quotidianamente os respectivos affagos da esponja embebida em tintura, já deveriam estar soffrivelmente russos, quando não grisalhos. Parte dos ouvintes duvidou, suppoz equivaler aquella affirmativa a uma intriga motivada pela recente inimizade; a outra parte acreditou, naturalmente.
A sra. d. Joaquina possuia uma educação mediocre, apenas sufficiente para conhecer os seus deveres de "moça solteira", quanto á educação moral; quanto á intellectual, lia com desembaraço e alguns tropeços prosódicos as cartas repassadas de sentimentalidade de dois ou tres namorados que tivera antigamente.
Eram essas leituras um desopilativo benefico para o seu spleen de senhora entrada em annos e votada á lastimosa condição de tia. Ai! A pobre d. Joaquina lastimava-se com tristeza de não haver em sua mocidade casado com o Guedes, o ferrageiro abastado, que se apaixonara loucamente por seus encantos, quando estes, ainda que em pequenina quantidade, escudavam-se n'uns vinte e dois annos de existencia. Ella não acceitara o amor d'elle, sonhando desposar um joven barão, muito rico e elegante, como um que conhecera n'um romance do insípido Ponson du Terrail. O barão, porém, nunca appareceu. Agora era tarde para remediar o mal: o Guedes, n'um momento de lucida reflexão, resolvera viver em calmo e economico celibato, apenas conservando em casa a Belisaria, cosinheira, mulata gorda como um cevado, a qual ministrava-lhe affagos cheios de faceiros quindins, nas horas de amor, e bôas tortas de camarões seguidas de compotas de delicioso bacury, á sobremesa.
Dos outros ex-namorados a sra. d. Joaquina jámais tivera informações exactas, depois que por espontanea vontade os desenganara. Dizia-se vagamente que um fôra negociar ao rio Madeira, d'onde nunca regressou, talvez pela seducção d'alguma yára encantadora. Do outro constava apenas que partira para seu paiz natal,—Portugal,—afim de ir saborear á lareira, nos longos serões de inverno,—quando o suão sibila em as grandes chaminés ennegrecidas,—os succulentos nácos de paios da Beira,—d'aquelles paios tão glutonamente decantados pelo illustre poeta João Penha.
Por ess'arte, achava-se a sra. d. Joaquina em disponibilidade, e, a dizermos tudo, deveremos accrescentar que alimentava agora umas secretas e dulçurosas esperanças de captivar o rebelde coração do Francisco da Natividade, o elegante dono d'uma das melhores lojas da rua dos Mercadores. Este, porém, parecia não partilhar das mesmas intenções, porquanto ouvia-lhe os suspiros languorosos sem estremecer, sem pestanejar, sequer, n'uma impassibilidade de mumia. Ella armava-lhe ratoeiras amorosas: mandava-lhe flôres, fazia-lhe presentes de toalhas de labyrintho e fronhas bordadas, temperava-lhe o café quando elle ia á casa da familia d'ella, chegava-lhe phosphoros accêsos aos charutos, roçando os dedos nos d'elle, para mudamente lhe revelar a sua paixão.
Comtudo, nada o commovia, e a sra. d. Joaquina rebellava-se intimamente contra o Francisco, quando, a sós, no momento de estender-se na sua fria rede de velha virgem, passava em revista pela memoria todos os seus actos relativos ao bom andamento d'aquelle amor.
Tal era o estado do coração da boa senhora na época em que o Natividade apresentou-lhe um sobrinho seu, recentemente chegado de Portugal.
A fina amabilidade do joven lisboeta, d'uma elegancia tão natural, attraíu as boas graças da digna solteirona, que logo sympathisou com elle. Em menos d'um mez o Raul tinha em a sra. d. Joaquina uma amiga sincera, uma attenciosa admiradora do "seu caracter austero."
Elle, para retribuir-lhe as affabilidades, redobrava de cumprimentos, desfazia-se nas mais requintadas delicadezas.
Levada pelas erupções d'aquelle seu coração vulcanico, ella começou a amar ao sobrinho, com o mesmo ardor com que pouco antes amara ao tio, o Francisco da Natividade. Cedo surprehendeu o bom moço as amorosas manobras da sra. d. Joaquina, e, julgando-o necessario, inteirou o parente sobre o affecto d'ella, para obedecer aos dictames do dever. Ambos riram-se muito da nova asneira da irrisoria senhora.
Ou porque trouxesse de Lisboa os germens d'uma bronchite, ou porque, já no Pará, apanhasse alguma constipação, Raul adoeceu, ficou pállido, perseguido por uma pequena tosse, e uma tarde, após o jantar, sentiu uma suffocação, seguida de agudas dôres na parte interna do thorax, as quaes communicavam-lhe com as omoplatas. Como tivesse vontade de cuspir, curvou-se a meio sobre uma escarradeira e expelliu um pouco de sangue vivo.
—Santo Deus, que vejo?!—exclamou o tio, assustado.—Já, um medico, depressa! continuou, a correr attonito pela sala....
O facultativo chamado receitou-lhe um medicamento adequado, que estancou o sangue, e retirou-se depois de haver feito duas ou tres recommendações sobre o tratamento.
Raul melhorou: dormiu bem durante a noite. Na tarde seguinte, porém, teve uma verdadeira e forte hemoptysia. Lá foi o moleque chamar novamente o doutor.
Depois de auscultal-o, e interrogar sobre a vida passada e climas em que habitara, o medico aconselhou-o a partir para Portugal assim que podesse. Assoberbado por tão assustadora recommendação, o bondoso Francisco da Natividade tratou logo de mandar o sobrinho pelo paquete que do Pará saíu seis dias depois.
No momento em que Raul despedia-se da sra. d. Joaquina, esta, chorando verdadeiras lágrymas de dó e de saudade, tirou do bolso uma carta lacrada a vermelho e deu-a ao enfermo, dizendo-lhe:
—Tome, seu Raul. Guarde isto. Quando chegar a Lisboa, leia e faça o que lhe peço. Mas, antes não a abra, pelo amor de Deus!
—Sim, minha senhora.... Os seus pedidos são ordens para mim.... Adeus!
Chegando á cidade do Tejo, estava Raul n'um auspicioso pé de restabelecimento. Todavia, entrou a medicar-se com cuidado, resguardando-se de tudo quanto podésse fazer-lhe mal. Estes uteis entretenimentos levaram-n'o a esquecer-se da sra. d. Joaquina.
Passaram os mezes. Raul ficou curado: estava gordo e forte. Como os medicos lhe recommendassem que não viesse ao Brazil, tratou de procurar emprego no continente. Achou um, que pareceu-lhe agradavel. Fez-se caixeiro viajante d'uma conceituada casa commercial, para ir fazer cobranças pelas provincias.
Na vespera do dia em que tinha de seguir para a primeira excursão,—ao Alemtejo,—estava elle arrumando umas roupas, quando, introduzindo a mão no bolso d'um paletot que só vestia em viagem, encontraram seus dedos um objecto qualquer. Tirou-o para a claridade e viu uma carta toda amarrotada e suja. Reconheceu-a logo: era a carta que lhe déra a sra. d. Joaquina.
—Ah! que esquecimento o meu!—exclamou.—Que juizo não terá feito a meu respeito a impagavel senhora....
E, cheio de curiosidade, rasgou o sobrescripto.
"Meu bom amigo,—leu.—Devo dizer-lhe uma coisa, que ha muito afflue-me aos labios, sem todavia sentir-me com animo de fazel-o: amo-o, amo-o, com todo o ardor de que é capaz o meu ardente coração! (Isto copiou ella do romance A Caridade Christã, de Escrich,—pensou Raul). Peço-lhe que escreva-me logo, dizendo-me se fui por si acolhido o meu amor. (Aquelle fui é que era genuinamente d'ella, só d'ella; o Raul bem o conheceu). Espero ancioza a sua resposta, com a qual o meu amigo remeter-me-á meia duzia d'AGUA CIRCASSIANA, para eu dar de presente a uma conhecida minha. Disponha sempre do coração de sua eternamente,—JOAQUINA."
Raul casquinou uma sonora gargalhada terminando a leitura d'aquelle modelo d'orthographia, propriedade de termos e syntaxe; mas, logo fez-se mais serio e:
—Ora bolas!—disse.—Só os cabellos encantavam-me, por serem tão pretos e lustrosos.... E era falsa aquella côr d'azeviche!.... Que desillusão!....
Considerações sobre o Conto de DesilusãoO Conto nos coloca diante de uma personagem grotesca e vazia. O autor utiliza-se dos casos de amor fortuitos da personagem D. Joaquina para traçar um perfil exagerado da mulher aos moldes naturalista, cuja personalidade oscilava entre as transpirações românticas e a realidade dos apelos do instinto.
Ao dividir as pessoas em dois grupos – os que “naturalmente” acreditariam que D. Joaquina usava tintura e o outro que não, por tratar-se de uma fofoca ele enfatiza com o termo “naturalmente” a descrença nas pessoas.
D. Joaquina, apesar de todos os pejorativos a sua aparência, a sua condição de solteirona e ao seu intelecto tem um comportamento avançado para a época. Ela toma a iniciativa no cortejo ao Francisco da Natividade, homem superiormente bonito e elegante, e quando este não lhe corresponde ela o troca pelo sobrinho Raul, que é bem mais jovem, bonito e com finezas de homem da metrópole, um tipo declaradamente romântico. Assim numa atitude contemporânea ela conjuga a máxima atual “a fila anda”.
Ao subverter as relações entre – Guedes e Benizaria, Francisco da Natividade e D. Joaquina – D. Joaquina e Raul - ele cria falsos “tolos e/ou subalternos”, e nos expõe ao jogo de aparências que sustenta a vida dos personagens. Acreditando serem mais do que pensam. A relação entre o Guedes e sua cozinheira Belizária irá encontrar semelhança na relação dos personagens Bertoleza e João Romã do romance naturalista. O cortiço de Aluísio de Azevedo, publicado um depois de contos paraenses.
O exagero na descrição da personagem principal é corrigido pela sua astúcia amorosa. O fato dela parecer uma parva lhe serve como vantagem para manipular àqueles que a subestimam e se acham superiores.
A crítica ao romantismo perpassa todo o conto, serve mesmo para explicar o temperamento débil da personagem e para ilustrar seu jovem amante. Mas somos surpreendidos, pois o romantismo é usado apenas como “armadilha”, para consecução dos desejos amorosos de D. Joaquina.
O percurso em busca do sentido do texto nos leva a perscrutar os inúmeros recursos estilísticos e lingüísticos que o escritor manipula com maestria para significar seus intentos. Ele nos desafia a jogar. “Literatura é um jogo e na boa escritura nada é de graça.”.
O clímax do conto está no assunto da carta, que cercada de mistério e recomendações sobre sua abertura, cria expectativa, que é frustrada uma vez que Raul só a abre depois de alguns meses, evidentemente ele esquece porque estava doente e a carta estava num paletó que ele só usava quando viajava. Para sua desilusão o que ele mais gostava nela, era falso. Seus cabelos pretos e lustrosos eram assim devido a uso constante da ÁGUA CIRCASSIANA, mesmo Joaquina explicando que era para uma amiga, ele gargalha da sua inocência.
O autor nos prova que o Romantismo é tolo e foi superado pelo Realismo, o Raul é o herói romântico – bom moço, bonito, tuberculoso e idealista, D. Joaquina feia, medíocre, encalhada, mas astuta – ilude o jovem que se decepciona com ela – quando todas as evidências apontavam para a feiúra e idade suficiente para ter cabelos brancos e com a visão obtusa dos românticos não viu a realidade. Para reforça a superioridade do Realismo sobre o Romantismo – ele faz alusão à vassalagem das cantigas de amor do Trovadorismo. Observe a conversa dos dois no porto antes da partida de Raul.
A redução do ser humano ao mundo animal nos é fornecida pelas expressões “ratoeiras amorosas” e “gorda como um cevado”. Os termos parecem se referir aos personagens feios e inferiores, mas numa leitura mais atenta observamos que é ao contrário, elas são dirigidas àqueles que se pensam bonitos e espertos.
As referências ao folclore (Yara encantadora) aos costumes (uso da rede) e a culinária e frutas paraenses reforçam o caráter regionalista do conto. A linguagem e a ortografia também são registros vivos do final do século XIX. Tudo é carreado de sentido.
E para concluir a palavra impagável, dirigida a D. Joaquina, abre e fecha à narrativa, mas têm cargas semânticas diferentes – no início se refere a “uma solteirona” para depreciar e no final “impagável senhora” em respeito. Ou seja, em reverência ao realismo.
Que bom marido!A Juvenal TavaresNão desejarás a mulher do teu proximo.
MANDAMENTO DE DEUS.Havia já três anos que estavam casados. Não tinham filhos. Viviam felizes, tranqüilos, na sua casinha da estrada de S. Braz, de frente pintada a cal, onde o sol da manhã brincava alegremente n'umas cintilações que davam a nota de grande prazer interno ao passeiante que para ela dirigisse escrutador olhar.
Ele era um velho quarentão, amanuense de secretaría, obeso, rubicundo, de rosto espalmado e barbas hirsutas e grisalhas. A mocidade que tivera — tempestuosa e poída nas orgias, — encanecera-lhe completamente os cabelos da cabeça, os quaes desciam para o rosto, onde se cruzavam numerosas rugas sobre a pela cor de ginja.
Ella tinha dezoito primaveras, — para me servir d'uma velha expressão do romantismo; - ostentava uma carinha faceira, risonha, d'olhos pretos e marotos. Tez morena e aveludada. Um sorriso excitantemente encantador descerrava-lhe os lábios vermelhos, mostrando duas filas de dentes mais alvos do que os de um cão da Terra-Nova. O corpo, flexível como a haste da angélica, era ágil e dotado de sedutores meneios, que impressionavam bem profundamente a mais de meia-duzia de gamenhos vadios, — d'esses namoradores enfatuados que abundam por toda a parte.
O seu regime de vida era, invariavelmente, este: de manhã, ás 8 horas, depois do respectivo e parco almoço, o sr. Bonifacio escovava com a manga da sobrecasaca o solene chapéu alto, dava um chocho á mulher e saía para a repartição com o passo do empregado publico: — impassível e cadenciado.
Elvira acompanhava o esposo até á porta da rua, fazia-lhe uma pequena caricia e voltava á varanda, a fim de dar algumas ordens acerca do jantar. Dispostas as coisas para a segunda refeição, ia sentar-se á máquina de costura, que lhe dava não diminuta receita para as despesas diárias. O ganho d'esses trabalhos e os vencimentos do sr. Bonifacio formavam uma soma bem razoável todos os meses, a qual lhes permitia de tempos a tempos o luxo d'um camarote no Teatro da Paz e um passeio a bonde em noites de luar, um vestido novo para o círio de Nazareth, algumas dúzias de pistolas e bixinhas na festa de S. João e mais outras regalias, que alegravam o gorducho amanuense e forneciam á encantadora esposa d'ele ensejo de satisfazer a sua natural vaidade de mulher bonita e nova.
Como acontece algumas vezes, a virtuosa esposa do sr. Bonifacio tinha seus adoradores, — rapazes toleirões, aos quaes Ella, diga-se a verdade, não ligava muita importância. Entre esses moços, quem mais assiduamente a requestava era um tal Jacyntho, — um leão conquistador que falava pelos cotovelos, muito tolo, ignorante de tudo, exceto da arte do namoro atrevido. Este Jacyntho apaixonára-se por Elvira poucos dias depois do casamento d'Ella, por ocasião d'um passeio a Benevides. Desde essa época, o pobre namorado sem ventura passava todas as tardes pela casa do Bonifacio, quando Elvira ia para a janela, enquanto o marido, na varanda, jogava o solo com o taberneiro da esquina e o visinho da direita. Ao passar em frente à Elvira, enviava-lhe um sorriso e um cumprimento. A esposa do honrado amanuense retribuía a este ultimo e conservava-se muito séria, muito digna, sem corresponder aquele. Passavam os dias, passavam os meses, e Jacyntho era pontual á entrevista, na qual Elvira já parecia interessar-se, pois que também não deixava de ir para a janela assim que, lá na varanda, o sr. Bonifacio, o taberneiro e o vizinho começavam no passo e no bolo. É que a interessante senhora tinha um espírito ardente, fantasista, que não podia se contentar com os sós afagos morosos e frios do velho Bonifacio. Não obstante, nenhum passo mal desejava dar. Entregava-se àquilo a que chamava "uma distração", mais para satisfazer uma vaga curiosidade do que para conter um crime.
—
Jacyntho não era um homem que perdesse a paciência. Assistia tranqüilo a esse esperdício de tempo, convicto do axioma que reza: "Agua mol Le em pedra dura, tanto dá até que fura." Tinha confiança no futuro, que resolveria, com vantagem, — aquele interessante problema de amor.
Uma tarde, — era em meados de junho, passou o Jacyntho, devéras admirado por ver que a sua querida não estava á janela. Olhou para os dois lados da rua e não enxergou ninguem. A estrada de S. Braz apresentava a aparência de um velho cemitério abandonado: nem um só vivente se via.
Constrangido, dispôs-se a continuar, quando avistou uma rapariguinha mulata, que saía da casa do sr. Bonifacio. Correu a ela e perguntou:
—Onde está a d. Elvira, minha filha?
A mulatinha fitou-o espantada e, curvando a cabeça para o peito, meteu na boca o índex da mão direita, conservando-se calada.
—Vamos, fala, toma um tostão.... Onde está a d. Elvira? — insistia o leão fazendo escorregar um nickel para o seio da pequena.
Esta, ao sentir o contacto da moeda, lembrou-se dos rebuçados da freguesa e disse ainda meio acanhada:
—Está lá dentro....
—E o sr. Bonifacio?
—Saiu.
—Dou-te outro nickel se flores levar uma carta á tua senhora, queres?
—Eu quero...
Jacyntho tirou do bolso uma carta que escrevera havia muito tempo e que, por cautela, não datára nem assinára. Entregou-a á mulatinha e conjuntamente outro tostão.
Depois seguiu pela estrada adiante.
Elvira não deu resposta aquela carta, que lhe revidara ao grande amor que por ela sentia o Lovelace paraense. Este não desanimou: deixou de passar pela estrada de S. Braz durante dois dias, após os quaes voltou, seguindo pelo passeio, rente á janela. Sacudiu-lhe ao colo nova epístola. Repetiu o mesmo jogo por uma semana. Finalmente, Elvira não pôde resistir mais, mandou-lhe uma carta toda cheia de temores, toda receiosa, na qual confessava que o Jacyntho não he era indiferentes, mas que devia abrir mãos áquele amor, porquanto a sua "posição de mulher casada não lhe permitia tão gratas liberdades."
D'então em diante, apesar d'esses receios continuaram as cartinhas a passar dos bolsos do Jacyntho para o seio d'Elvira e do seio d'esta para os bolsos d'aquele. É que houve uma tarde em que Elvira entrou a confrontar o physico do sr. Bonifacio com o de Jacyntho. Esse confronto e as reminiscências de muitas leituras românticas deram causa á correspondência criminosa.
Havia já alguns meses que o amor dos dois não tivera outras expansões além d'aquelas missivas platônicas. O temperamento de Jacyntho era mais exigente.
Uma tarde de dezembro, o sr. Bonifacio descia do bonde em frente de casa, de volta d'uma visita que fora fazer a seu chefe de secção. Transpondo o limiar da porta, encontrou a mulatinha que saía apressadamente, escondendo mal entre as dobras do vestido um objeto que he atraiu a atenção de velho curioso.
—Que levas ai? — perguntou.
—Não é nada... —respondeu a rapariga n'essa voz cantada peculiar aos paraenses.
—Não mintas! Eu vi não sei quê!—bradou o sr. Bonifacio puxando-a pelo braço e apoderando-se do objeto.
Era um bilhete. Abriu-o, assestou-lhe os óculos e leu:
"Meu amigo, depois d'amanhã, á meia noite, meu marido vai ouvir a missa do galo em Sant'-Anna. Finjo-me adoentada para ficar em casa, a fim de conversar com sigo e saber d'essa novidade que prometeu contar-me. Venha á 1 hora. Acautele-se bem; que ninguem o veja.
ELVIRA.
O Bonifacio subiu ao arame; ficou da côr da púrpura e sentiu uma violentíssima dor de cabeça. Teve ímpetos ardentes de ir assassinar a esposa infiel; refletiu, porém, e socorreu-se d'um alvitre que lhe apareceu a súbitas no espírito com rubros lampejos de sanguinária vingança.
—Toma, leva, — disse entregando a carta á rapariga.
E entrou.
—
Batem às 12 horas da noite de 24 de dezembro. Grupos folgazões de moços d'ambos os sexos passam pelas ruas de Belém em direção ás diferentes igreja onde se deve rezar a missa do gelo.
O sr. Bonifacio, que se levantou á ultima pancada das 11 horas, sai para a rua, deixando em casa a mulher incomodada "com muita dor de cabeça...."
Á 1 hora, um vulto apareceu na esquina, aproximando-se a passos ligeiros até chegar a frente ao domicilio do amanuense Bonifacio. Era o Jacyntho, que bateu pressuroso e baixinho em uma das janelas. Respondeu-lhe do interior um leve ruído. Jacyntho estremeceu de contentamento, pregoando os prazeres que ia fruir na conversação de Elvira, quando subitamente exalou um grito, dando um salto para o lado.
Era o respeitável sr. Bonifacio, que saindo de traz da mangueira onde se ocultara, desancava a bom desancar o peralvilho que tivera a lembrança de namorar-lhe a mulher.
Quando Jacyntho saltou para o meio da rua, recorreu o sr. Bonifacio á pouca agilidade que ainda possuía e acompanhou-o, continuando a sová-lo fortemente, n'uma agitação febril....
O pobre rapaz gritava dolorosamente. Ninguem acudiu-lhe: todos os vizinhos haviam saído para a missa do galo.
Quando cansou, quando os braços negaram-se a continuar, o honrado amanuense, despedindo olhares terríveis para todos os lados, disse ao Jacyntho, que se achava por terra, com os ossos quase moídos:
—Vá-se embora, seu tratante e tenha mais juízo! Não torne a cair na asneira de namorar moças casadas!
E retirou-se para casa, a cuja porta entreaberta estava Elvira, transida de medo.
Considerações sobre o Conto "Que bom Marido"
É um caso social que bem se poderia considerar atual. - escrito com deliciosa malícia e onde podemos admirar o poder descritivo, verdadeiro retrato, quando qualifica as personagens do conto:
"Ele era um velho quarentão, amanuense de secretaria, obeso, rubicundo, de rosto espalmado e barbas hirsutas e grisalhas. A mocidade que tivera - tempestuosa e poída nas orgias - encanecera-lhe completamente os cabelos da cabeça, os quais desciam para o rosto, onde se cruzavam numerosas rugas sob a pele cor de ginja"
"Ela tinha dezoito primaveras, - para me servir d'uma velha expressão do romantismo; - ostentava uma carinha faceira, risonha, d'olhos negros e marotos. Tez morena e aveludada. Um sorriso excitantemente encantador descerrava-lhe os lábios vermelhos, mostrando duas filas de dentes mais alvos do que os de um cão de Terra Nova. O corpo flexível, como a haste da angélica era ágil e dotado de sedutores meneios, que impressionava bem profundamente a mais de meia dúzia de gamenhos vadios - desses namorados enfatuados que abundam por toda parte".
1. Não desejarás a mulher do teu próximo.
MANDAMENTO DE DEUS.• Observe a citação do 10º mandamento que cai como advertência ao exclamativo título “que bom marido!”
2. Havia já três anos que estavam casados. Não tinham filhos. Viviam felizes, tranqüilo, na sua casinha da estrada de S. Braz, de frente pintada a cal, onde o sol da manhã brincava alegremente n'umas cintilações que davam a nota de grande prazer interno ao passeiante que para Ella dirigisse escrutador olhar.
Observar:
• A descrição romântica e simples, “casinha” branca com sol da manhã, apesar dos encantos, eles só podem ser percebidos por um atencioso olhar (escrutador).
3. Ele era um velho quarentão, amanuense de secretaría, obeso, rubicundo, de rosto espalmado e barbas hirsutas e grisalhas. A mocidade que tivera — tempestuosa e poída nas orgias, — encanecera-lhe completamente os cabelos da cabeça, os quaes desciam para o rosto, onde se cruzavam numerosas rugas sobre a pele cor de ginja.
• Ele é velho gordo e decrépito, puído das orgias e vermelho (cor de ginja), fruta excelente para licor, mas aqui associado ao rosto vermelho pela obesidade.
• Temos mais um personagem de aparência horrenda, vitima das conseqüências de uma vida desregrada.
4. Ella tinha dezoito primaveras, — para me servir d'uma velha expressão do romantismo; — ostentava uma carinha faceira, risonha, d'olhos pretos e marotos. Tez morena e aveludada. Um sorriso excitantemente encantador descerrava-lhe os lábios vermelhos, mostrando duas filas de dentes mais alvos do que os de um cão da Terra-Nova. O corpo, flexível como a haste da angélica, era ágil e dotado de sedutores meneios, que impressionavam bem profundamente a mais de meia-duzia de gamenhos vadios, - d’esses namoradores enfatuados que abundam por toda a parte.
Observemos:
• Ela jovem, faceira, risonha, olhos marotos, ágil, malemolente se contraponto x velho, gordo, hirsuto, puído.
• Referência ao mundo animal: “duas filas de dentes mais alvos do que os de um cão da Terra-Nova” – referencia ao mundo animal (zoomorfismo) - Cães Terra-Nova - uma raça de cães natural do Canadá, descendente geneticamente dos mastiffs. Sua personalidade, todavia, é diferente. O terra-nova pode ser considerado o cão mais paciente, tolerante e tranqüilo de todos. Descrito como resignado, é um bom cão de companhia, já que gosta de participar das atividades familiares e aprecia a companhia humana.• “Flexível como haste da angélica”- essa planta é indicada para desconforto digestivo como sensação de enfartamento e flatulência, males associados à velhice.
5 A beleza e os meneios vulgares, ela só chama atenção de vadios e homens comuns.
O seu regime de vida era, invariavelmente, este: de manhã, ás 8 horas, depois do respectivo e parco almoço, o sr. Bonifacio escovava com a manga da sobrecasaca o solene chapéu alto, dava um chocho á mulher e saía para a repartição com o passo do empregado publico: — impassível e cadenciado.
Observe:
• O parco almoço – ele comia pouco, mas era gordo.
• Expressão chocho – beijoca ou beijo insípido
• O porte orgulhoso do Sr. Bonifácio quiçá por ser um funcionário público e estar casado com um moça bonita e muito jovem.
6. Elvira acompanhava o esposo até á porta da rua, fazia-lhe uma pequena caricia e voltava á varanda, a fim de dar algumas ordens acerca do jantar.
Observe:
• varanda - sacada/sala da frente - ela dava ordens acerca do jantar, mas estava sempre exposta para quem estivesse na rua.
7. Dispostas as coisas para a segunda refeição, ia sentar-se á máquina de costura, que he dava não diminuta receita para as despesas diárias. O ganho d'esses trabalhos e os vencimentos do sr. Bonifacio formavam uma somar bem razoável todos os meses, a qual lhes permitia de tempos a tempos o luxo d'um camarote no teatro da Paz e um passeio a bonde em noites de luar, um vestido novo para o círio de Nazareth, algumas dúzias de pistolas e bixinhas na festa de S. João e mais outras regalias, que alegravam o gorducho amanuense e forneciam á encantadora esposa d'ele ensejo de satisfazer a sua natural vaidade de mulher bonita e nova.
Vamos observar
• Referências a Belém e suas festas religiosas– teatro da Paz/ Círio de Nazaré/ festa de São João
• Neste conto mais uma vez nos deparamos com uma mulher de postura inesperada para os padrões opressivos da Antiga Belém.
• Elvira trabalha e tem certa independência financeira, pois para usufruir de algumas regalias é necessário somar o que ela ganha com o salário do marido, ou seja, o marido não dá conta de todos os gastos.
TIPOS FEMININOSCom apresentação desses tipos femininos – Hortência do romance Hortência era enfermeira, trabalhava fora e muito respeitada por isso, D. Joaquina do conto Desilusão, apesar de feia e cafona e prendada para as artes do casamento, era ela quem tomava a iniciativa nos romances e aqui Elvira, jovem, bonita, casada com um homem bem mais velho, que supostamente poderia dar-lhe tudo, trabalha para ajudar o marido. Ela rompe com o estereotipo da mulher prendada, voltada exclusivamente aos deveres do lar, comportamento típico da dona de casa dos finais do século XIX.
8. Como acontece algumas vezes, a virtuosa esposa do sr. Bonifacio tinha seus adoradores, — rapazes toleirões, aos quaes ela, diga-se a verdade, não ligava muita importância. Entre esses moços, quem mais assiduamente a requestava era um tal Jacyntho,—um leão conquistador que falava pelos cotovelos, muito tolo, ignorante de tudo, exceto da arte do namoro atrevido. Este Jacyntho apaixonára-se por Elvira poucos dias depois do casamento d'ela, por ocasião d'um passeio a Benevides. Desde essa época, o pobre namorado sem ventura passava todas as tardes pela casa do Bonifacio, quando Elvira ia para a janela, enquanto o marido, na varanda, jogava o solo com o taberneiro da esquina e o visinho da direita.
O que vamos observar
• Ela não dava importância aos assédios, mas ficava na janela justamente nos momentos em que o marido estava distraído jogando com a vizinhança.
• observa-se a ironia em pobre rapaz sem ventura, ora o Jacyntho era o Leão, metáfora do rei das selvas, o forte o dominador em oposição ao velho cervo, Bonifácio.
• O Leão apaixona-se por Elvira poucos dias depois do casamento dela.
• “não ligava muita importância”
9. Ao passar em frente à Elvira, enviava-lhe um sorriso e um cumprimento. A esposa do honrado amanuense retribuía a este ultimo e conservava-se muito séria, muito digna, sem corresponder áquele. Passavam os dias, passavam os meses, e Jacyntho era pontual á entrevista, na qual Elvira já parecia interessar-se, pois que também não deixava de ir para a janela assim que, lá na varanda, o sr. Bonifacio, o taberneiro e o vizinho começavam no passo e no bolo. É que a interessante senhora tinha um espírito ardente, fantasistas, que não podia se contentar com os sós afagos morosos e frios do velho Bonifacio. Não obstante, nenhum passo mal desejava dar. Entregava-se aquilo a que chamava "uma distração", mais para satisfazer uma vaga curiosidade do que para cometer um crime.
O que vamos observar:
• A postura de Elvira.
• O interesse de Elvira - a insistência do leão cercando sua presa a faz ceder.
• Ele justifica o interesse da Elvira falando dos instintos dela “É que a interessante senhora tinha um espírito ardente, fantasista, que não podia se contentar com os sós afagos morosos e frios do velho Bonifacio”.
• A distração de Elvira.
OPOSTOS - Jacynto – jovem, Leão, conquistador, retórico, ignorante nas demais artes, mas um atrevido nas artes amorosas x Bonifácio – velho-obeso-rubicundo (avermelhado)-rosto espalmado - barbas hirsutas e grisalhas (barbas peludas, eriçada, em desalinho e pardas, mescladas - aparência cansada, cabelos brancos devido às orgias e caídos no rosto – enrugado
10. Jacyntho não era um homem que perdesse a paciência. Assistia tranqüilo a esse esperdício de tempo, convicto do axioma que reza: "Agua mole em pedra dura, tanto dá até que fura." Tinha confiança no futuro, que resolveria, com vantagem, — Aquelle interessante problema de amor.
O que vamos observar
• “Jacyntho é o leão, e o leão, como outros felinos, é um caçador oportunista”, diz o biólogo Carlos C. Alberts, da UNESP de Assis, interior de São Paulo. Significa que estuda o terreno antes de atacar, é um estrategista. Tinha convicção de que presa seria abatida – Isso no remete ao Darwinismo “na natureza só sobrevivem os mais fortes”. O autor se utiliza de um aforismo popular para provar a teoria.
11. Uma tarde, — era em meados de junho, passou o Jacyntho, devéras admirado por ver que a sua querida não estava á janela. Olhou para os dois lados da rua e não enxergou ninguem. A estrada de S. Braz apresentava a aparência de um velho cemitério abandonado: nem um só vivente se via.
O que vamos observar
• A rua não era bonita, pois o autor a compara com um cemitério abandonado imagina-se capim alto, flores secas, grinaldas velhas, cruzes caídas e cria uma antítese – mortos do cemitérios x viventes que não se via. – quiçá para enfatizar a feiúra e a desolação do lugar – que com a ausência da Elvira da Janela foi mais acentuada.
• A casa era bonita numa rua que lembrava um cemitério
12. Constrangido, dispôs-se a continuar, quando avistou uma rapariguinha mulata, que saía da casa do sr. Bonifacio. Correu a ela e perguntou:
—Onde está a d. Elvira, minha filha?
A mulatinha fitou-o espantada e, curvando a cabeça para o peito, meteu na boca o índex da mão direita, conservando-se calada.
Vamos, fala, toma um tostão.... Onde está a d. Elvira? — insistia o leão fazendo escorregar um nickel para o seio da pequena.
Esta, ao sentir o contacto da moeda, lembrou-se dos rebuçados da freguesa e disse ainda meio acanhada:
—Está lá dentro....
—E o sr. Bonifacio?
—Saiu.
—Dou-te outro nickel se fores l levar uma carta á tua senhora, queres?
—Eu quero....
Jacyntho tirou do bolso uma carta que escrevera havia muito tempo e que, por cautela, não datára nem assinára. Entregou-a á mulatinha e conjuntamente outro tostão
O que vamos observar:
• A mulatinha faz charme sedutor – ela curva a cabeça em direção ao peito ele coloca o dedo indicador na boca e cala-se.
• Jacynto compra-lhe resposta de forma igualmente sedutora.
• Os dissimulamentos e os disfarces da freguesa.
• Ele já tinha toda a estratégia traçada – a carta já estava escrita esperando por uma oportunidade
13. Depois seguiu pela estrada adiante.
Elvira não deu resposta aquela carta, que lhe revelara o grande amor que por ela sentia o Lovelace paraense. Este não desanimou: deixou de passar pela estrada de S. Braz durante dois dias, após os quaes voltou, seguindo pelo passeio, rente á janela. Sacudiu-lhe ao colo nova epístola.
O que vamos observar:
• Marcas lingüísticas - O uso do pronome demonstrativo na frase Elvira “não deu resposta aquela carta!”, cria uma sensação de que houve outras cartas de outros homens, pois ele particularizou a de Jacynto.
• O termo lovelace deriva do nome de um personagem sedutor de mulheres do romance Clarisse Harlowe (1749), de autoria do escritor inglês Samuel Richardson. - homem que usa qualquer recurso (do galanteio à lascívia) para atrair, conquistar uma mulher.
• O leão não desiste continua cercando sua presa.
14. Repetiu o mesmo jogo por uma semana. Finalmente, Elvira não pôde resistir mais, mandou-lhe uma carta toda cheia de temores, toda receiosa, na qual confessava que o Jacyntho não lhe era indiferente, mas que devia abrir mãos áquele amor, porquanto a sua "posição de mulher casada não lhe permitia tão gratas liberdades."
O que vamos observar:
• Ela não nega a afeição por ele, na verdade gosta das liberdades, posto assim ela alimenta as esperanças mesmo sendo casada.
• Havia já alguns meses que o amor dos dois não tivera outras expansões além d'aquelas missivas platônicas. O temperamento de Jacyntho era mais exigente.
15. D'então em diante, apesar d'esses receios continuaram as cartinhas a passar dos bolsos do Jacyntho para o seio d'Elvira e do seio d'esta para os bolsos d'aquele. É que houve uma tarde em que Elvira entrou a confrontar o physico do sr. Bonifacio com o de Jacyntho. Esse confronto e as reminiscências de muitas leituras românticas deram causa á correspondência criminosa.
O que vamos observar:
• O autor justifica a atitude adúltera de Elvira às leituras românticas. Joga toda a culpa do crime no romantismo
16. Havia já alguns meses que o amor dos dois não tivera outras expansões além d'aquelas missivas platônicas. O temperamento de Jacyntho era mais exigente
Uma tarde de dezembro, o sr. Bonifacio descia do bonde em frente de casa, de volta d'uma visita que fora fazer a seu chefe de secção. Transpondo o limiar da porta, encontrou a mulatinha que saía apressadamente, escondendo mal entre as dobras do vestido um objeto que he atraiu a atenção de velho curioso.
—Que levas ai?—perguntou.
—Não é nada... — respondeu a rapariga n'essa voz cantada peculiar aos paraenses.
—Não mintas! Eu vi não sei quê!—bradou o sr. Bonifacio puxando-a pelo braço e apoderando-se do objeto.
Era um bilhete. Abriu-o, assestou-lhe os óculos e leu:
"Meu amigo, depois d'amanhã, á meia noite, meu marido vai ouvir a missa do galo em Sant'-Anna. Finjo-me adoentada para ficar em casa, a fim de conversar consigo e saber d'essa novidade que prometeu contar-me. Venha á 1 hora. Acautele-se bem; que ninguem o veja.
ELVIRA "
O que vamos observar
• Observar o tempo que durou a correspondência entre eles – o Leão era paciente, mas queria mais. Elvira, ardilosamente trama para encontra o amante. Deixa os pudores e se entrega a paixão.
17. O Bonifacio subiu ao arame; ficou da cor da púrpura e sentiu uma violentíssima dor de cabeça. Teve ímpetos ardentes de ir assassinar a esposa infiel; refletiu, porém, e socorreu-se d'um alvitre que lhe apareceu a súbitas no espírito com rubros lampejos de sanguinária vingança.
—Toma, leva, — disse entregando a carta á rapariga.
E entrou.
O que vamos observar
• Embora tendo a moral açoitada e guiado por sentimentos próprios da época – vingar o adultério com sangue. Ele prefere alternativa.
• Aqui temos o clímax do conto.
• Qual será a atitude do velho cervo?
• Batem às 12 horas da noite de 24 de dezembro. Grupos folgadões de moços d'ambos os sexos passam pelas ruas de Belém em direção ás diferentes igrejas onde se deve rezar a missa do galo.
18. O sr. Bonifacio, que se levantou á ultima pancada das 11 horas, sai para a rua, deixando em casa a mulher incomodada "com muita dor de cabeça...."
O que vamos observar
• O plano que se segue é o da Elvira, mas mantém-se o suspense uma vez que o marido sabe do ardil da mulher.
19. Á 1 hora, um vulto apareceu na esquina, aproximando-se a passos ligeiros até chegar a frente ao domicilio do amanuense Bonifacio. Era o Jacyntho, que bateu pressuroso e baixinho em uma das janelas. Respondeu-lhe do interior um leve ruído. Jacyntho estremeceu de contentamento, pregoando os prazeres que ia fruir na conversação de Elvira, quando subitamente exalou um grito, dando um salto para o lado.
Era o respeitável sr. Bonifacio, que saindo de traz da mangueira onde se ocultara, desancava a bom desancar o peralvilho que tivera a lembrança de namorar-lhe a mulher.
Quando Jacyntho saltou para o meio da rua, recorreu o sr. Bonifacio á pouca agilidade que ainda possuía e acompanhou-o, continuando a sová-lo fortemente, n'uma agitação febril....
O que vamos observar
• O leão leva uma surra do velho gordo e puído.
• A agilidade do jovem leão não foi suficiente para deter a pancadaria do velho.
20. O pobre rapaz gritava dolorosamente. Ninguem acudiu-lhe: todos os vizinhos haviam saído para a missa do galo.
Quando cansou, quando os braços negaram-se a continuar, o honrado amanuense, despedindo olhares terríveis para todos os lados, disse ao Jacyntho, que se achava por terra, com os ossos quase moídos:
—Vá-se embora, seu tratante e tenha mais juízo! Não torne a cair na asneira de namorar moças casadas!
E retirou-se para casa, a cuja porta entreaberta estava Elvira, trazida de medo.
O que vamos observar
• A inversão - o velho puído se transforma em Leão – arma uma estratégia, bate, persegue e imobiliza a presa.
• Ele vira fera e quando a presa tá no chão ele... despedindo olhares terríveis para todos os lados, tal como as feras quando com suas presas abatidas quer certificar-se de que não serão incomodas.
• Mais uma vez João Marques nos diz que as aparências enganam. A inteligência está com quem se julga mais fraco.
• O conceito de bom marido.
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