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Crônica de Olavo Bilac

terça-feira, 3 de abril de 2012

Olavo Bilac
Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1865 — Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 1918) foi um jornalista e poeta brasileiro, membro fundador da Academia Brasileira de Letras. Criou a cadeira 15, cujo patrono é Gonçalves Dias.
Conhecido por sua atenção a literatura infantil e, principalmente, pela participação cívica, era republicano e nacionalista; também era defensor do serviço militar obrigatório. Bilac escreveu a letra do Hino à Bandeira e fez oposição ao governo de Floriano Peixoto. Foi membro-fundador da Academia Brasileira de Letras, em 1896. Em 1907, foi eleito “príncipe dos poetas brasileiros”, pela revista Fon Crônica: um gênero literário
       A crônica é um gênero literário que, a princípio, era um "relato cronológico dos fatos sucedidos em qualquer lugar"1, isto é, uma narração de episódios históricos. Era a chamada "crônica histórica" (como a medieval). Essa relação de tempo e memória está relacionada com a própria origem grega da palavra, Chronos, que significa tempo. Portanto, a crônica, desde sua origem, é um "relato em permanente relação com o tempo, de onde tira como memória escrita, sua matéria principal, o que fica do vivido".
        A crônica se afastou da História com o avanço da imprensa e do jornal. Tornou-se "Folhetim". João Roberto Faria no prefácio de Crônicas Escolhidas de José de Alencar nos explica:
"Naqueles tempos, a crônica chamava-se folhetim e não tinha as características que tem hoje. Era um texto mais longo, publicado geralmente aos domingos no rodapé da primeira página do jornal, e seu primeiro objetivo era comentar e passar em revista os principais fatos da semana fossem eles alegres ou tristes, sérios ou banais, econômicos ou políticos, sociais ou culturais. O resultado, para dar um exemplo, é que num único folhetim podiam estar lado a lado, notícias sobre a guerra da Criméia, uma apreciação do espetáculo lírico que acabara de estrear, críticas às especulações na Bolsa e a descrição de um baile no Cassino."
        O folhetim fazia parte da estrutura dos jornais, era informativa e crítica. Aos poucos foi se afastando e se constituindo como gênero literário: a linguagem se tornou mais leve, mas com uma elaboração interna complexa, carregando a força da poesia e do humor.
        Ainda hoje há a relação da crônica e o jornalismo. Os jornais ainda publicam crônicas diariamente, mas seu aspecto literário já é indiscutível. O próprio fato de conviver com o efêmero propicia uma comunicação que deve ser reveladora, sensível, insinuante e despretensiosa como só a literatura pode ser. É "uma forma de conhecimento de meandros sutis de nossa realidade e de nossa história..."2.
        No Brasil, a crônica se consolidou por volta de 1930 e atualmente vem adquirindo uma importância maior em nossa literatura graças aos excelentes escritores que resolveram se dedicar exclusivamente a ela, como Rubem Braga e Luís Fernando Veríssimo, além dos grandes autores brasileiros, como Machado de Assis, José de Alencar e Carlos Drummond de Andrade, que também resolveram dedicar seus talentos a esse gênero. Tudo isso fez com que a crônica se desenvolvesse no Brasil de forma extremamente significativa.
           Na crônica, "Tudo é vida, tudo é motivo de experiência e reflexão, ou simplesmente de divertimento, de esquecimento momentâneo de nós mesmos a troco do sonho ou da piada que nos transporta ao mundo da imaginação. Para voltarmos mais maduros à vida..."
Observe que até nos nossos dias os temas abordados por Bilac são atuais, pois estão em evidências todos os dias nos meios de comunicação.
-Fon. Bilac, autor de alguns dos mais populares poemas brasileiros, é considerado o mais importante de nossos poetas parnasianos. No entanto, para o crítico João Adolfo Hansen, "o mestre do passado, do livro de poesia escrito longe do estéril turbilhão da rua, não será o mesmo mestre do presente, do jornal, a crônica aborda assuntos cotidianos do Rio, prontinho para intervenções de Agache e a erradicação da plebe rude, expulsa do centro para os morros"
Podemos dizer que através da crônica, Bilac expressou de forma exemplar o seu pensamento e os arranhões à sua sensibilidade, as suas perplexidades e revoltas diante dos destinados humanos e do desconcerto do mundo. Mas também os seus sonhos de um país mais civilizado e de um mundo melhor. Este livro apresenta uma seleção com as melhores crônicas de Olavo Bilac.

Crônica: um gênero literário
       A crônica é um gênero literário que, a princípio, era um "relato cronológico dos fatos sucedidos em qualquer lugar"1, isto é, uma narração de episódios históricos. Era a chamada "crônica histórica" (como a medieval). Essa relação de tempo e memória está relacionada com a própria origem grega da palavra, Chronos, que significa tempo. Portanto, a crônica, desde sua origem, é um "relato em permanente relação com o tempo, de onde tira como memória escrita, sua matéria principal, o que fica do vivido".
        A crônica se afastou da História com o avanço da imprensa e do jornal. Tornou-se "Folhetim". João Roberto Faria no prefácio de Crônicas Escolhidas de José de Alencar nos explica:
"Naqueles tempos, a crônica chamava-se folhetim e não tinha as características que tem hoje. Era um texto mais longo, publicado geralmente aos domingos no rodapé da primeira página do jornal, e seu primeiro objetivo era comentar e passar em revista os principais fatos da semana fossem eles alegres ou tristes, sérios ou banais, econômicos ou políticos, sociais ou culturais. O resultado, para dar um exemplo, é que num único folhetim podiam estar lado a lado, notícias sobre a guerra da Criméia, uma apreciação do espetáculo lírico que acabara de estrear, críticas às especulações na Bolsa e a descrição de um baile no Cassino."
        O folhetim fazia parte da estrutura dos jornais, era informativa e crítica. Aos poucos foi se afastando e se constituindo como gênero literário: a linguagem se tornou mais leve, mas com uma elaboração interna complexa, carregando a força da poesia e do humor.
        Ainda hoje há a relação da crônica e o jornalismo. Os jornais ainda publicam crônicas diariamente, mas seu aspecto literário já é indiscutível. O próprio fato de conviver com o efêmero propicia uma comunicação que deve ser reveladora, sensível, insinuante e despretensiosa como só a literatura pode ser. É "uma forma de conhecimento de meandros sutis de nossa realidade e de nossa história..."2.
        No Brasil, a crônica se consolidou por volta de 1930 e atualmente vem adquirindo uma importância maior em nossa literatura graças aos excelentes escritores que resolveram se dedicar exclusivamente a ela, como Rubem Braga e Luís Fernando Veríssimo, além dos grandes autores brasileiros, como Machado de Assis, José de Alencar e Carlos Drummond de Andrade, que também resolveram dedicar seus talentos a esse gênero. Tudo isso fez com que a crônica se desenvolvesse no Brasil de forma extremamente significativa.
           Na crônica, "Tudo é vida, tudo é motivo de experiência e reflexão, ou simplesmente de divertimento, de esquecimento momentâneo de nós mesmos a troco do sonho ou da piada que nos transporta ao mundo da imaginação. Para voltarmos mais maduros à vida..."
Observe que até nos nossos dias os temas abordados por Bilac são atuais, pois estão em evidências todos os dias nos meios de comunicação.

Crônica de Olavo Bilac

Trabalho feminino
O sábado, em que está sendo escrita esta crônica, arrasta-se aborrecido e pesado, numa enxurrada de lama, sob o açoite frio dos aguaceiros, cheio de uma melancolia que nada pode dissipar. Oh! estes dias de chuva! Deus sabe quanto suicídio tem por causa a sua fúnebre tristeza…
Deixando cair o livro que lia, o cronista levantou-se, abriu a janela, lançou um olhar entediado ao céu e à rua.
Que céu e que rua! Em cima uma planície cinzenta, manchada aqui e ali de nuvens mais escuras, que crescem, estendem-se em cargas-d’água barulhentas e grossas. Em baixo, lama e deserto… Os bondes que passam trazem as cortinas abaixadas, lustrosas de chuva, bambas, ao áspero vento que as sacode. E não se vê ninguém… Quem há que se atreve a afrontar a dureza desta úmida manhã, toda de. choro e enfaro.
Mas não… Lá vem, cosido à parede, um vulto apressado. E uma mulher. Mais perto agora, distinguem-se-lhe as feições, as roupas encharcadas, sob o puído guarda-chuva gotejante. A borrasca envolve-a, gasta-a, enraiva-se sobre ela, com uma crueldade implacável. A velha saia preta, colada às pernas, vem barrada de lama; os sapatos chapinham nas poças da água; e sempre cosida à parede, carregando um grande embrulho, tossindo e tremendo de frio. Lutando contra a ventania furiosa, lá se vai à pobre — fantasma da pobreza, vítima de uma dura sorte, cm busca do pão com que há de alimentar os filhos pequenos, e, quem sabe? talvez também um marido malandro, que fica, no calor da alcova, contando as tábuas do teto e fumando, enquanto a mísera tirita pelas ruas alagadas…
Em geral, nós, que só conhecemos as senhoras da nossa roda, pensamos que todas as mulheres são melindrosos alfenins que qualquer trabalho fadiga. Mas as que conhecemos são as flores humanas, cuidadosamente criadas na estufa da civilização; são uns encantadores e estranhos animais, metade anjos, metade demônios, tão sedutores e sobre a dureza da vossa negra sorte — ó mulheres pobres, que sois tão mais fortes do que nós, na moral como no físico!
Ainda não há três dias publicava A Notícia esta local: "Pela primeira vez, foi enviado ao Ministério da Fazenda um requerimento de uma senhorita pedindo para inscrever-se [***] concurso, a fim de exercer um emprego [***] Fazenda.
"Esse requerimento foi à diretoria do contencioso, a fim de ser informado, e combateu a pretensão, pelo que o sr. ministro da Fazenda resolveu indeferir o mencionado requerimento."
Ora, as leis humanas não podem ter a infalibilidade que a Igreja atribuí às leis divinas. A sociedade não pode sujeitar-se ao império de uma lei absurda, somente porque ela é uma lei.
Sempre que se agita esta questão das reivindicações femininas,escovam-se e [***] os velhos chavões, e, com um grande ar de importância, os filósofos decidem sem apelação que a mulher não pode ser mais do que o anjo do lar, a vestal encarregada de vigiar o fogo sagrado, a depositária das tradições da família… e das chaves da despensa. Todo esse dispêndio de palavras inúteis serve apenas para encobrir a fealdade da única razão séria que podemos apresentar contra as pretensões das mulheres: o nosso egoísmo, o receio que temos de que nos despojem das nossas prerrogativas seculares — o medo de perder as posições, as regalias, as honras que o preconceito bárbaro confiou exclusivamente ao nosso século. Compreende-se: quem se habituou a empunhar o bastão do comando não se resigna facilmente a passá-lo a outras mãos: é mais fácil deixar a vida do que deixar o poder.
Por que não há de a mulher poder exercer "um emprego da Fazenda"? Que há de misterioso e sagrado de recôndito e impenetrável no exercício dessas funções que, não possa ser devassado e apreendido pelo espírito de uma mulher?
Amar o próximo e praticar o bem, praticar a caridade nos hospitais de sangue e nos asilos civis, educar crianças — são tarefas infinitamente mais sérias do que alinhar algarismos em livros, calcular taxas de cambio, aplicai tarifas e computar perdas e ganhos. É, pois preciso ter o cérebro de um Dante, de um Comte, de um Bacon, para poder trazer Em dia o livro do protocolo de uma repartição pública ou para saber somar quatro colunas de algarismos?
Entretanto, que bela experiência a tentar! O espírito da mulher tem sobre o nosso uma incontestável superioridade: não é feito, como o nosso, de imaginação, de poder criador, de invenção; é feito de bom senso, de prudência de tenacidade, de paciência. Já alguém escreveu que "a mulher que dedicasse à execução de um plano financeiro a inteligência minuciosa e clara que satânica… Essas são as que nasceram para ser servidas e adoradas, como santas em nichos de ouro e prata, cobertas de alfaias e de jóias.
Mas, por uma dessas, quantas mil existem que são a providência doméstica, o amparo da família que as formigas, mais infatigáveis do que as abelhas, mourejando da primeira luz do dia às horas cerradas da noite, entisicando sobre a máquina de costura, perdendo as forças sobre a tábua de engomar, tisnando a pele junto das chamas do fogão!
Ninguém pensa nisso… Só de quando em quando, um cronista melancólico, levado pela própria tristeza a cuidar das tristezas alheias, demora a atenção costuma dedicar à execução de um complicado plano de toalete, desbancaria talvez os melhores economistas do mundo".
Em bom senso, não as vencemos, como não as vencemos em economia.
Se todos quisessem ser sinceros, ou antes, se não quisessem enganar a si mesmos, quantos homens confessariam que os melhores atos de toda a sua existência foram inspirados no recesso do lar, entre dois carinhos — nessas horas de intimidade em que as mulheres sabem influir sobre o nosso espírito sem mostrar o que estão fazendo, e cm que nós, inconscientemente, sem humilhações para o nosso desmarcado orgulho, vamos pouco a pouco adotando as suas idéias e abandonando as nossas, de maneira que, daí a pouco, exclusivamente parece nosso aquilo que é exclusivamente delas!
Em economia, então — que abismo entre elas e nós!
Não se trata, está claro, destas lindas e adoráveis senhoras do grande clã, deusas deliciosas, cujas mãos perfumadas foram feitas apenas para dissipar o dinheiro…
Mas, nas casas pobres, que maravilhas de zelo, de poupança, de milagroso comedimento nas despesas! Não têm conta as donas de casa que reproduzem diariamente o milagre da multiplicação dos pães!
Quando rompe a manhã, já a abelha humana anda à uma hora zumbindo e trabalhando. Não há recanto da casa que escape à vigilância do seu olhar, não há providência que seja esquecida pela sua inteligência sempre alerta. Oh! o doce milagre! com um punhado miserável de dinheiro, é preciso alimentar os filhos, é preciso vesti-los, é preciso educá-los, é preciso consolar o marido e cercá-lo de conforto quando ele é infeliz, é preciso viver com decência… O trabalho não se faz sem lágrimas… A tarefa é rude, os pulmões se enfraquecem, calejam-se as mãos, vai-se a beleza, perdem-se as graças — mas a casa prospera… E. quando à noite, derreada e quase morta de cansaço, a heroína vai sentar-se junto à máquina Singer para dar conta do serão, uma doce auréola paira sobre a sua pálida cabeça de mártir do dever.
Ah! que orgulho o nosso! e não há homem que reconheça esse sacrifício! e não há homem que deixe de atribuir à sua própria competência enfatuada a prosperidade e conforto que brotaram no seu lar, quando, quase sempre, esses doces frutos são devidos às lágrimas e às gotas de suor com que as mártires regaram o solo…
É singular! nega-se a quem é capaz de fazer tudo isso o direito de aspirar a um lugar de amanuense de secretaria! Mas, por todos os santos do Paraíso! se há uma lei que determina isso, revogue-se quanto antes essa lei absurda!
Abram-se às mulheres todas as portas! Porque, enfim, nós, os homens, já temos contribuído tanto para plantar na Terra o domínio da tolice e da injustiça — que não era mau saber se o outro sexo não é capaz de ter mais juízo do que o nosso!


Antônio Conselheiro
Confesso que nunca entendo bem as cousas que se passam aqui. Tenho viajado tanto, que já não há canto da terra que os meus pés de cabra não tenham calcado, nem recanto de horizonte em que não tenham pousado os meus olhos satânicos: e tenho, em todas as terras, entendido tudo; aqui, porém, o mais insignificante caso se reveste de tão extraordinárias circunstâncias e se complica de tão singulares episódios, que a minha pobre cabeça de diabo, com as idéias baralhadas, se perde, delira, ensandece… Vede-me, para exemplo, este caso do Antônio Conselheiro…
O Conselheiro é (dizem-no todos) um fanático, um desequilibrado, um histérico. Em criança, tinha crises de epilepsia. Casou. A mãe dele desandou logo a ter conflitos, e bate-línguas, e troca de insultos ásperos com a nora. Entre as duas, Antônio Conselheiro penava, querendo em vão reconciliá-las. Um dia, desesperado, foi-se à velha: "Por que briga a senhora com minha mulher? que lhe fez ela? por que não a deixa em paz?".
A velha, alma danada, para reconquistar o amor e a confiança do filho, não trepida em se valer de uma calúnia. E convence Antônio de que a mulher o engana: "Queres a prova? finge uma viagem, volta depois às escondidas, te oculta na chácara, e espreita! Verás que, às horas tantas da noite, há de chegar àquele que é mais amado do que tu!".
Aceita o moço o conselho, diz que vai jornadear, beija a mulher, e parte. Mas, à boca da noite volta, e, dentro de uma moita, fica à espreita. Daí a pouco, vê que um vulto de homem salta o muro e, com passo de gatuno, leve e abafado, se aproxima da casa. Antônio (em todo homem há sempre a fúria de um Otelo!), 2 Antônio não resiste ao primeiro impulso da cólera: põe à cara o clavinote e dispara-o. Cai o vulto, baleado. E quando o desgraçado vai ver de perto quem matou, vê estendida por terra, numa poça de sangue, a própria mãe, vestida de homem. A mísera, querendo iludir o filho, tivera a diabólica idéia de combinar toda esta aventura, cujo êxito pagou com a morte…
Isso é o que diz a lenda. E diz mais que Antônio, desesperado, internou-se nos matos bravios, transformando-se desde então neste Conselheiro que é hoje diretor de 3 mil fanáticos que, armados de carabinas Chuchu, devastam a Bahia e estão dando que fazer às tropas do general Sólon.
Há desgraçados que o remorso transforma em frades, ou em criminosos relapsos, ou em suicidas, ou cm idiotas. Outros muda-os o remorso em apóstolos… E o Conselheiro não foi impelido para o Apostolado unicamente pelo remorso. Este já achou o terreno preparado na alma do Antônio — alma de inquieto, de agitado, de nevrótico. Podia dar para outra cousa o homem: mas deu para se julgar Enviado de Deus, encarregado de regenerar o mundo, de redimir a humanidade, de combater os governos existentes.
Ainda se ele parasse aí! se os 3 mil homens se limitassem a correr os desertos, e a comer gafanhotos como são João Batista, e a jejuar e a orar como santo Antão, na Tebaida!… Mas, não! os fanáticos de Antônio Conselheiro, apesar de se dedicarem à penitência e à reza, e à reforma dos costumes dos homens — não podem passar sem pão, sem carne, sem cachaça, e sem mulheres. E, pois, saqueiam as vilas, assolam as aldeias, matam os ricos, escravizam os pobres, defloram as raparigas, e assim vão vivendo bem, bem combinando os sacrifícios do viver religioso com as delícias do comer à tripa forra.
Ora bem! chegamos agora ao ponto principal do caso. Pelo que todo mundo diz do Conselheiro, ele não é só um fanático: é também um salteador; e salteadores, além de fanáticos, são também todos os seus sequazes. E, em qualquer outra parte do mundo, esse pessoal seria baleado, corrido a pedra e a sabre, sem complicações, sumariamente.
Aqui, não! Aqui tudo é política. Aqui não se compreende que se faça alguma cousa, ou boa ou má, sem ser por política. Houve um incêndio? política! Um bonde elétrico matou um homem? uma senhora fugiu de casa? política. Caiu um andaime? o Prudente tinha uma pedra na bexiga? política! E, assim, o Conselheiro, na opinião da imprensa indígena, nem é um fanático, um Jesus de fancaria — nem é um salteador, um Fra Diavolo.
A Liberdade cala-se sobre ele: manha de monarquista. A República diz que ele é emissário do príncipe do Grão-Pará: recurso de jacobino. da Bahia: é um homem político, é um conspirador, é um restaurador da monarquia…
Entre essas duas manias, quem lucra é o nosso Conselheiro, que, sendo, ao mesmo tempo, um maluco acabado e um refinadíssimo patife, deixa de ser tudo isso, para ficar sendo, graças à mania política da terra, um agitador, um Kossuth,5 um Montt,6 um não sei quê!
Viva a política! Nada há mais sobre a Terra, debaixo do clarão esplendido do sol!
O Diabo Vesgo
A Bruxa 11/12/1896

Notas
1. Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro (1828-97): nascido em Quixeramobim, no Ceará, Antônio Conselheiro liderou a rebelião de Canudos, no interior da Bahia. Este episódio de nossa história, ocorrido entre 1896 e 1897, foi à base de Euclides da Cunha para escrever Os sertões (1902).
2. Otelo, o Mouro de Veneza, é personagem de peça homônima de Shakespeare (1564-1616). Casado com a bela Desdemona, Otelo mata-a num acesso de ciúme, persuadido de que ela o traíra com Cássio. Depois de saber-se enganado, Otelo se mata.
3 General Frederico Sólon Ribeiro (1842-1900): comandante do Distrito Militar da Bahia, sob cuja responsabilidade deu-se a Ia
4 Fra Diavolo (Frei Diabo) (1771-1806): aventureiro de origem italiana, Pca Diavolo em o apelido de Micbele Pezza, que foi executado no reino de Nápoles, a mando dos franceses. Expedição a Canudos, encabeçada pelo tenente Pires Ferreira, em novembro de 1896. Depois dessa derrota em Uauá, armou-se um conflito de interesses entre o governador Luís Viana e o general Sólon.
5 Lajos Kossuth (1802-94): político húngaro, Kossuth batalhou pela independência de seu pais e por medidas aduaneiras que protegessem a indústria e o comércio da Hungria.
6 Manuel Montt (1808-80): político chileno, Manuel Montt foi presidente do seu país entre 1851 e 1861, quando implantou uma política de modernização e de reformas.

Prostituição infantil
Não sei que jornal, há algum tempo, noticiou que a polícia ia tomar sob a sua proteção as crianças que aí vivem, às dezenas, exploradas por meia dúzia de bandidos. Quando li a notícia, rejubilei. Porque, há longo tempo, desde que
comecei a escrever, venho repisando este assunto, pedindo piedade para essas crianças e cadeia para esses patifes.
Mas os dias correram. As providências anunciadas não vieram. Parece que a piedade policial não se estende às crianças, e que a cadeia não foi feita para dar agasalho aos que prostituem corpos de sete a oito anos… E a cidade, à noite, continua a encher-se de bandos de meninas, que vagam de teatro em teatro e de hotel em hotel, vendendo flores e aprendendo a vender beijos.
Anteontem, por horas mortas, [***] que me encheu de mágoa e de nojo, de indignação e de angústia. Saía de um teatro. [***] rua central da cidade, deserta há essa hora avançada da noite, vi sentada uma menina, a uma soleira de porta. Dormia. Ao lado, a sua cesta de flores murchas estava atirada sobre a calçada. Despertei-a.
A pobrezinha levantou-se, com um grito. Teria oito anos, quando muito. Louros e despenteados, emolduravam os seus cabelos um rosto desfeito, amarrotado de sono e de choro. E dentro do miserável vestidinho de chita, todo o seu corpo tremia como numa convulsão, nervosamente. Quando viu que não lhe queria fazer mal, o seu ar de medo mudou-se logo num ar de súplica. Pediu-me dez tostões, chorando.
E a sua meia-língua infantil, espanholada, disse-me cousas que ainda agora me doem dentro do coração.
Perdera toda a féria. Só conseguira obter, ao cabo de toda uma tarde de caminhadas e de pena, esses dez tostões — perdidos ou furtados. E pelos seus olhos molhados passava o terror das bordoadas que a esperavam em casa…
"Mas é teu pai quem te esbordoa?"
"E um homem que mora lá em casa…"
Dei-lhe os dez tostões, sem poder falar.
Ela, já alegre, com um sorriso divino que lhe iluminava a face úmida, pediu-me mais duzentos reis — para si, esses, para doces.
Guardou a nota na cesta, e meteu a mesada na meia, depressa, para a esconder…
Fiquei parado, longo tempo, a olhá-la. O seu vulto fugia já, pequenino, quase invisível na escuridão. Ainda de longe o vi fracamente alumiado por um lampião, sumir-se, dobrando uma esquina. Segui o meu caminho, com a morte na alma.
Ora — nestes tempos singulares em que a gente já se habituou a ouvir sem espanto cousas capazes de horrorizar a alma de Deiber —, é possível que alguém, encolhendo os ombros diante disto, me pergunte, o que é que eu tenho com a vida das crianças que vendem flores e são amassadas a sopapos quando não levam para casa uma certa e determinada quantia.
Tenho tudo, amigos meus! não penseis que me iluda sobre a eficácia das providências que possa a polícia tomar, a fim de salvar das pancadas o corpo e da devassidão a alma de qualquer dessas meninas. Bem sei que, enquanto o mundo for mundo e enquanto houver meninas — proteja-as ou não as proteja a polícia —, haverá pais que as esbordoem, mães que as vendam, cadelas que as industriem; cães que as deflorem!
Bem o sei: mas sei também que possuo nervos que vibram coração que se impressiona e olhos que vêem. E se a polícia não pode impedir a continuação dessa infâmia — pode pelo menos impedir que ela se ostente escandalosa, florescendo e frutificando a sombra da sua indulgência e da sua tolerância.
A polícia não pode proibir também que as meretrizes de profissão se entreguem ao seu comércio. Mas não deixa que elas apareçam nuas à janela, e muito menos consente que venham fazer no meio da rua, à luz meridiana, o que fazem no interior das casinhas de porta e janela. Com um milhão de raios! Quem tem a desgraça de possuir dentro do organismo um cancro incurável — não podendo extirpá-lo, trata ao menos de o esconder, por higiene, por decência, por pudor!
Demais, que custa abrir um inquérito para conseguir saber que grau de parentesco existe entre as crianças vendedoras de flores e os que as exploram? Eu, por mim, posso afirmar a quem de direito que, em cada grupo de dez crianças dessas, interrogadas por mim, duas apenas me têm dito que conhecem pai ou mãe…
Enfim, todos nós temos mais que fazer. E talvez a sorte melhor que se possa desejar hoje cm dia a uma criança pobre — seja uma boa morte, uma dessas generosas mortes providenciais, que valem mais que todas as esmolas, todas as bênçãos, todos os augúrios felizes e… toda a comiseração dos cronistas.
Olavo Bilac


Recenseamento
Enfim, vai o Rio de Janeiro conhecer-se a si mesmo… Uma cidade sem recenseamento é uma cidade que a si mesma se ignora, porque não tem a consciência da sua força, do seu valor, da sua importância.
É mais que um serviço —- e não é dos menores — que o Rio vai dever ao seu prefeito, a esse homem providencial, de quem já se pode impunemente dizer o maior bem, sem o risco de passar por adulador, pois que já não há, em toda a cidade, quem o não admire e o não louve.
Infelizmente, já se descobriu o meio de opor embaraços à realização da bela idéia. No mesmo dia em que o prefeito decretava a organização do recenseamento da população, era publicado um ofício do ministro da Guerra, solicitando a organização do alistamento militar… E o povo, cotejando essas duas medidas, juntando-as, pesando-as na mesma balança, começou logo a atribuir-lhes uma aliança oculta um conúbio escondido, uma identidade de intuitos e de fins. A gente culta (que infelizmente não é legião) sabe- que esses dois serviços nada têm de comum, e que o propósito da prefeitura é, única e exclusivamente, o de saber quando habitantes tem a capital da República — cousa que, por vergonha de todos nós, ainda não se havia tentado averiguar. Mas, para a gente ignorante e desconfiada (a desconfiança e a ignorância são irmãs gêmeas), o recenseamento é o pretexto para o alistamento militar — e já o medo da farda e do serviço de caserna começa a sugerir às almas inquietas a idéia de se recusar a encher as listas censitárias.
Esse terror é
Hoje, o recenseamento tem um fim mais amplo, mais nobre, mais belo — um fim social. E uma parte essencial da estatística, que, sendo "o estudo numérico dos fatos sociais", é uma das ciências tributárias e auxiliares da sociologia. Como explicam os mestres da economia política, a vida social é um movimento perpétuo, uma transformação contínua, e uma constante renovação de fenômenos, que, por mais diversos que pareçam sempre se podem classificar em um número relativamente limitado de categorias. Não há um só fato individual que deixe de ser interessante, porque os fatos individuais, reunidos, formam os fatos sociais; e não há meio de governar sem o conhecimento desses fatos. É a estatística que torna possível o governo. Ela é, por assim dizer, a "escrituração social": se uma casa de comércio não pode viver e prosperar sem o registro minucioso das suas compras e vendas, e sem* os balanços periódicos que demonstram o bom ou mau estado dos seus negócios — também a sociedade humana não pode dispensar os seus guarda-livros, que são os encarregados da estatística… natural. Antigamente, o recenseamento apenas era feito para auxiliar dois serviços profundamente antipáticos aos povos de todos os tempos: o do recrutamento militar e o da cobrança de impostos. O imposto e a farda — dois espectros, dois espantalhos! Já na velha Roma, no remotíssimo tempo de Servius Tulius, quando os curatores tribuum saíam, com as suas tabuinhas enceradas e os seus estiletes de marfim, a percorrer a urbe, e a recensear os habitantes, separando-os em assidui e proletarii — um medo pânico se alastrava pelas vielas e pelas alfurjas da cidade, e um terço da população, sabendo que aquilo significava guerra ou imposto, cobrança de sangue ou cobrança de dinheiro, transpunha as portas, e ia refugiar-se no campo.
Essa "escrituração social" tem sido até hoje criminosamente relaxada no Brasil. Os "guarda-livros" do país, ou são incompetentes, ou são indiferentes. Aqui a estatística é um mito. Para não ir muito longe, e apenas citar um fato simples e de fácil verificação, basta lembrar que, no Rio ele Janeiro, a Biblioteca Nacional e o Museu Nacional não têm catálogos! É incrível, mas é verdade… Se nem temos sido capazes de organizar e publicar o catálogo de um museu ou de uma biblioteca, não é de espantar que não tenhamos organizado e publicado
até hoje o catálogo geral da nossa população, das nossas riquezas, do nosso trabalho, da nossa vida…
Há pouco tempo; a Legação Japonesa no Brasil distribuiu, pelas repartições públicas e pelas redações dos jornais, o Anuário financeiro e econômico do Japão relativo a 190$. Lendo esse livro, que é um monumento assombroso e maravilhoso de estatística, é que se pode compreender o estupendo progresso daquela nação.
O que nós costumamos chamar "milagres" não é mais do que o resultado simples e natural da combinação destas duas forças: o trabalho e o método… Nesse anuário, tudo quanto constitui a vida do país está incluído, estudado, discriminado, catalogado, classificado: orçamentos, dívida pública, empréstimos, agricultura, indústria, viação, comércio. Há ali cousas que espantam; há, por exemplo, um quadro demonstrativo da produção do fumo, que é um assombro de exatidão e de minúcia: o fumo colhido foi contado de folha em folha… E com esse trabalho e com esse método que as casas de comércio prosperam que as casas de família têm fartura e conforto, e que as nações enriquecem e se fazem fortes e respeitadas!
Agora reparo que a "Crônica" está perdendo o tom que lhe compete, e enveredando por um estilo que não é o seu.
Estas cousas são tão corriqueiras, que até as crianças das escolas primárias as conhecem…
E parece, realmente, que é pedantaria ridícula, e ridícula ostentação de ciência barata, o estar aqui o cronista a demonstrar as vantagens e a utilidade da estatística em geral, e do recenseamento em particular…
Mas estas idéias, tão simples, tão claras, tão vulgares, não podem, desgraçadamente, ser eficazmente incutidas no ânimo de toda a nossa população. Por quê? porque uma grande parte da nossa população não sabe ler…
Basta lembrar a última Bernarda que tivemos no Rio: a de novembro de 1904… Que foi o que causou esses sanguinolentos motins? Foi à intriga perversa de alguns especuladores políticos que excitaram o povo contra a lei da vacinação: e muita gente acreditava que os médicos iam injetar no seu corpo sangue de rato atacado de peste bubônica! Essa balela, que apenas parecia cômica, teve efeitos trágicos. Que utilidade poderiam ter, para destruí-la, os boletins profusamente espalhados pelas autoridades sanitárias, e as explicações dadas pela imprensa? Nenhuma. O papel benéfico da imprensa não pôde deixar de ser quase nulo, numa cidade que conta quase 1 milhão de habitantes, mas na qual todos os jornais diários reunidos não chegam a vender 100 mil exemplares por dia…
Assim, não há meio de contrariar eficazmente o equívoco, que a publicação simultânea das duas medidas veio criar. Se o Ministério da Guerra houvesse adiado a publicação do seu propósito — o povo, que confia no prefeito, porque dele só tem recebido benefícios e cuidados, veria no recenseamento mais uma prova da sua paterna! administração, c auxiliá-lo-ia. Mas parece que há, neste pais, uma doença orgânica, que leva muita gente, irresistivelmente, a perturbar e estragar, com consciente ou inconsciente maldade, tudo quanto se pretende fizer de bom.
Vão agora tirar da cabeça de certa gente que a entrega das listas censitárias há de expô-la ao recrutamento militar!
O que é verdade é que, para, abusivamente, c contrariando expressamente a letra da lei, pôr em prática o recrutamento forçado, as autoridades militares não carecem do recenseamento. Ainda há pouco, para organizar a parada espetaculosa de uma guarda nacional que não existe, alguns coronéis de mentira andaram complicando a vida doméstica dos cidadãos, privando-os violentamente dos serviços dos seus cozinheiros e dos seus copeiros…
O povo, porém, não compreende isso. Se lhe não demonstrarem cabalmente que o recenseamento civil, organizado pela prefeitura, nada tem de comum com o alistamento militar, organizado pelo Ministério da Guerra, ele, apavorado pelo fantasma da Farda, há de mais uma vez furtar-se ao cumprimento de um dever social, que tão facilmente e com tão grande utilidade para todos pode ser cumprido. Como, porém, fizer essa demonstração àqueles que, por culpa e desídia do Estado, continuam aviltados pelo analfabetismo, moralmente cegos, tristemente mantidos na ignorância, privados da compreensão dos seus direitos e dos seus deveres?
É aqui que tudo vem ter: o problema da instrução é como, nas máquinas, o eixo central, em torno do qual os movimentos de todas as peças se combinam e conjugam. Por isso, é que não deixo de tocar este realejo, cuja música pode parecer enfadonha, mas é indispensável: e "si cette histoire vous embête,/ nous allons la recommencer!". ["se esta história vos aborrece/ nós vamos recomeçá-la”]
O.B.

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